ABRUPTO

26.2.05


BIBLIOFILIA: O D'ANNUNZIO DAS DACTILOGRAFAS E DAS MANICURAS


Livros encontrados nuns restos que nunca foram arrumados, vindos de uma casa hoje quase em ruínas. Livros mais que comuns, vulgares, daqueles que se podem comprar por um euro nos alfarrabistas, também aí em fundos dos fundos, que ninguém quer. Mas, para mim, livros e tempo são a mesma coisa, tempo que demora a lê-los e tempo que eles transportam. E quando se abre a porta a esse tempo, ela nunca se fecha.

Veja-se o romance de Guido da Verona, A Que Não se Deve Amar, tradução de António Ferro de Colei che non si deve amare, escrito em 1911. A capa veneziana interessou-me , mas pensei em mais um dos romances cor-de-rosa que eram populares nos anos entre as duas guerras. A edição portuguesa da Empresa Literária Fluminense é de 1928. Foi a capa que me chamou a atenção, com o seu tom fitzgeraldiano, a dama desequilibrada junto de um cavalheiro mais alto, e, nesse desequilíbrio, colando-se a ele numa forma que, à época, seria certamente “desavergonhada”. O vestido e as transparências acentuam todo um movimento erótico. Era literatura para homens ou para mulheres? Não li o livro, não sei, embora suspeite que como a cara do cavalheiro está da mesma cor da senhora, deve ser “a que não se deve amar” que faz perder a cabeça ao cavalheiro, logo é literatura para senhoras. Digo eu, com certezas a mais. Um resumo do romance diz que é uma história de ascensão social – excelente matéria cor-de-rosa – ele jogador e ela “mantenuta per lei”.

Quem seria este Guido da Verona para além de ser de Verona, e ter ar de pseudónimo? Nem uma coisa nem outra. Era de Modena, mais propriamente de Saliceto Panaro, onde nasceu em 1881 e não era pseudónimo. O mais interessante é que era futurista, dandy, jogador (autor de um tratado de jogar á roleta Il trattato delle possibilità impossibili con l'arte di vincere al gioco), e imensamente popular. Classificado como autor de "romanzatura da coltre e da conforto intimo", ou, noutra notável classificação, de «D'Annunzio delle dattilografe e delle manicure», o seu livro mais popular tem também um título que diz tudo Mimì Bluette, fiore del mio giardino. Valeu-lhe de pouco a fama e a popularidade, porque Guido da Verona teve uma vida agitada e, no fim, trágica, passando de amigo dos fascistas a perseguido por eles. Morreu (assassinado? suicida?) esquecido em 1939.

Estão a ver como funciona o tempo? Já estou no meu momento Pitigrilli, outro célebre esquecido. Sic transit...

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© José Pacheco Pereira
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