José Pereira Tavares, Exame de Consciência, Aveiro, Labor, 1999
Este livro, que ninguém quis, quando saiu, distribuir pelas livrarias, e permanece esquecido, é um exemplo notável de como ignoramos e , ao ignorar desprezamos, o melhor que temos. Trata-se das humildes memórias de um professor do Liceu, quando Liceu se escrevia com letra grande e era o local de elite do ensino secundário, onde uma elite de professores ensinava uma elite de alunos, escolhidos obviamente pela sua condição social, que permite um retrato de um tempo que nunca mais voltará. Em muitos aspectos ainda bem. O que convinha era não deitar o menino com a água do banho, ou seja a qualidade do ensino com a sua democratização. Para perceber o que se passou, o estudo do “mundo” dos professores do Liceu, quando esta era uma profissão altamente prestigiada devia ser obrigatório para os professores de hoje. Este livro mostra o mundo cultural, pedagógico e cívico de um típico professor do Liceu, José Pereira Tavares, reitor do Liceu de Aveiro, que vai dos anos vinte até à década de sessenta nas suas recordações. Depois percebe-se a diferença. Pura arqueologia.
Mas há mais. José Pereira Tavares era um republicano conservador, o último homem a que se podia chamar um subversivo, detendo aliás um lugar de reitor que implicava um módico de confiança política do regime salazarista. Mas os homens são como são, e este tinha a dignidade simples e intacta. Nestas memórias conta um episódio de 1951, um ano de grande radicalismo da ditadura, no princípio da guerra-fria. Eis como este pequeno acto, quase anónimo, – tudo isto se passa convém lembrar para os dias de hoje, sem ninguém saber - , nos mostra a respiração da dignidade.
" Ora em 13 de Janeiro de 1951, recebi eu, como entidade oficial, um "Manifesto" da Comissão Executiva da União Nacional, acompanhado da seguinte circular da Comissão Distrital de Aveiro:
"Junto se remetem a V. Exa alguns exemplares do "Manifesto" elaborado pela Comissão Executiva da U. Nacional, agradecendo o favor de lhe dar a maior difusão possível entre o pessoal que se encontra sobre (sic) as ordens de V. Ex. Esta Comissão Distrital muito grata ficaria se se dignasse enviar-lhe uma lista "com indicação do nome, ano de nascimento, profissão e morada" dos indivíduos que desejarem inscrever-se na U.N., para em seguida enviar a V. Exa os respectivos boletins de inscrição. Etc, etc. - Gaspar Ferreira, Francisco José Matias, Arménio Martins".
Na "Lista de inscrição" lia-se o seguinte: "Os cidadãos abaixo assinados declaram por sua honra, sem que a isso hajam sido coagidos, que apoiam leal e desinteressadamente a situação criada pelo 28 de Maio de 1926, concordando com as ideias e intuitos com que se organizou esse movimento e com a orientação indicada pelo Governo no manifesto à Nação publicado no primeiro aniversàrio do mesmo. Mais declaram que, quaisquer que tenham sido os seus ideais políticos, os põem de parte, olhando apenas ao progresso e engrandecimento da Pátria, que exige, neste momento critico da nossa História, a união e o esforço desinteressado e leal de todos os seus filhos, para o que oferecem o seu apoio e colaboração".
Os professores do Liceu ficaram alarmados, supondo que era obrigatória a sua filiação. Acalmei-os e prometi indagar dos propósitos dos indivíduos que subscreviam a circular. No dia 18 de Janeiro, escrevi ao Cor. Gaspar Ferreira, nos seguintes termos:
Recebi a circular da Comissão Distrital da U. Nacional de Aveiro, convidando-me a enviar a lista dos meus subordinados que desejem nela inscrever-se.
Respondendo par mim, venho pedir a V. Exa se digne informar-me sobre se, não me inscrevendo, seriam postos em dúvida o meu nacionalismo e o meu patriotismo.
Sabe V. Ex. mt. bem os motivos por que me recusei a ingressar na U.N., quando ela, sendo V. Exa Governador Civil, foi criada; e também não ignora que esses motivos ainda subsistem. A minha posição de cidadão português sem partido não obstou a que, sem eu o desejar, me convidasse pessoalmente, em Outubro de 1940,0 Sr. Ministro da Educação Nacional (Dr. Mário de Figueiredo) para de novo assumir o cargo de reitor do Liceu, que é lugar em que só são investidos indivíduos da confiança do Governo. Venho desempenhando essas funções há dez anos completos, sinal de que se reconhece que à frente do Liceu está um português incapaz de trair a sua Pátria, ou de insuflar no espírito da Mocidade, cuja educação cívica superiormente dirige, sentimentos que não sejam de puro nacionalismo.
No Manifesto, apela-se para o meu patriotismo. Ora a mim repugna-me ter de o afirmar com a inscrição num partido em que Monárquicos e Integralistas, em vez de se limitarem a colaboração com o Governo, aproveitam a ensejo para fazerem propaganda das suas ideias politicas, a sombra de instituições cuja existência não está em causa.
Desejaria, portanto, continuar a ser português tal qual o tenho sido sempre, isto é, sem subordinação a qualquer partido. Nem por isso deixarei de aplaudir abertamente, como sempre tenho feito, tudo quanto de bom ou de óptimo os Governos de Salazar façam e nem por isso deixarei de continuar a orgulhar-me da minha qualidade de português e de patriota.
Se porém, a minha escusa em inscrever-me na U.N. pudesse ser interpretada par alguém com a confissão tácita de que não sou nacionalista, inscrever-me-ia; mas a U.N. nada lucraria com isso, visto que a minha inscrição equivaleria somente a uma declaração anticomunista, como as que, por mais de uma vez, por força de leis do meu País, tive de fazer, como funcionário público, perante o Governo".
Como o portador da carta não tivesse encontrado o Cor. Gaspar Ferreira, no dia seguinte lha li, para que me esclarecesse.
A resposta foi a de que a filiação dos funcionários na U. Nacional não era obrigatória e pediu-nos considerasse a circular como não recebida.
Ficaram satisfeitíssimos os meus colaboradores. Na lista das inscrições só veio a figurar uma assinatura."