ABRUPTO

23.1.05


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: SOBRE UMA MORTE

...em Cambridge…

Conheci muito bem e convivi muito com um religioso, Prof. Universitário, que era, e tinha sido então, o maior especialista em Dante. Quando o conheci tinha ele 73 anos. Vivíssimo, inteligentíssimo. (Todo ele era uma pessoa peculiar, excêntrica e quase bizarra que se passeava pela sua comunidade, com camisolas rotas, despenteado, dedos amarelos de cigarros inenarráveis que fumava e com uma gata ao colo, olhando para todo o lado com um ar semi-espantado). Com ele mantive uma relação muito interessante e com ele aprendi muito e foi uma das pessoas que mais me marcou ao longo da vida, e uma das coisas mais interessantes que ele me ensinou é que nada é um adquirido, nem mesmo a fé. Ele, que era religioso, padre e “scholar”, todos os dias tinha que refazer o seu percurso da fé: da palavra à revelação, da redenção à ressurreição, não se dava tréguas a si próprio; tinha que “entender”, tinha que, todos os dias se abrir de novo a Deus com trabalho e esforço.

Era esse o preço que pagava pela inteligência que tinha:
o nunca ter certezas, nem sequer que Deus existia e que Cristo era seu filho. O seu trabalho era aprofundar a fé e o estudo, quer de Dante e poesia, quer da teologia (era também estudioso de S. Tomás de Aquino), era mais um meio de, através dos homens, e da arte, chegar a Deus. Mas parece que nunca chegava…Tem muita obra publicada nas diferentes áreas que é reconhecida em todo o mundo (Vasco Graça e Moura refere-se várias vezes a ele, nas suas traduções quer de Dante quer de Petrarca).

Um dia apanhou uma pneumonia e tivemos que o levar ao hospital. Estava mal e os médicos alertaram-no para o facto de que, muito provavelmente e devido ao seu estado geral débil, poderia morrer. Ele percebia que era assim, mas o seu lado rebelde, que gostava de viver e que mordia a vida com uma fúria pouco comum e que lhe valeu ao longo de toda a sua vida alguns apuros, revoltava-se, e passou verdadeiros momentos de pânico e de medo perante a morte. As vezes que o vi no hospital, notei-lhe o pânico, o medo no olhar, a ânsia de mais um sopro que lhe levasse oxigénio aos pulmões, o medo de falar de mais e começar a tossir, o corpo velho, magro e tão frágil. Tentava parecer em controlo da situação, racional. Pediu para lhe lermos uns poemas de Gerard Manley Hopkins, agarrou a minha mão, pediu oxigénio, tossiu, sempre irrequieto, sempre revoltado, sempre apavorado, sem saber como seria a morte e se Deus estaria do outro lado a acolhê-lo. Estava muito só. Um frade não tem família. Tem os membros da comunidade que rezam por ele, mas não tem família. Daquela que sofre com ele, que o acompanha e que morre um pouco com a sua morte. Custou-me muito deixá-lo ao fim da tarde, não recebeu mais visitas. Nessa madrugada morreu. Só.

(J.)

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© José Pacheco Pereira
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