ABRUPTO

1.11.04


SOBRE O PORTO - REPETIÇÕES

O Porto é a minha cidade "moral". Nem eu sei bem o que isso é, mas sei que é. Para complementar a "geografia", aqui ficam dois textos antigos sobre o Porto:

"O Porto não é a cidade dos anjos, nem a cidade da luz, nem a cidade branca. É feito de uma pedra onde todas as partes brilham - e no entanto é escura, sólida, tensa, pesada.

É feito de mica que é um pequeno espelho mineral, de quartzo que pode ser absolutamente transparente, ou de feldspato, de cor sedosa, vagamente rosa. Mas, a pedra do Porto, feita de tanta luz, é escura e a cidade é assim uma cidade do Norte, iluminada por essa luz que ninguém melhor do que os pintores dinamarqueses de Skagen conheciam. É na Foz do Douro que esta luz começa e depois sobe pelas colinas cobertas de casas, pelas ruelas, até onde termina a cidade novecentista, as avenidas que a transportam até uma periferia de onde partiam as "estradas". Para Amarante, para Guimarães, para Braga, para Entre-os-Rios, para um interior que está profundamente ligado com a cidade cujo nome diz que nunca ninguém a venceu.

O olhar do Porto é por isso um olhar grave como o granito. É um olhar que já vem de muito longe e foi sempre o mesmo. É um olhar burguês, dos que vivem e trabalham no burgo e que na cidade encontram um refúgio e as liberdades. As liberdades e não a democracia, porque o Porto é mais liberal do que democrata.

Este olhar burguês é contrário à dissipação, ao desperdício. É também por isso que no Porto nem os yuppies, nem as rapariguinhas do shopping esconderam as centenas de milhares de vidas de trabalho antigas que estão pregadas em todas as fachadas da cidade. Vidas de estivadores, de caldeireiros, de tipógrafos, de tabaqueiros, de carvoeiros, de comerciantes, de carrejonas, de merceeiros e marçanos, de alfaiates, de cobradores, de ourives, de criadas de servir, de taberneiros, de talhantes, de armazenistas. São estas vidas que fizeram o Porto e que olham por dentro do olhar das pessoas do Porto."


*

"O Porto fez-me gostar de uma qualidade sem grandes elogios nos dias de hoje e também sem grande reconhecimento social, por muita retórica que à sua volta se ouça, a integridade. Muita da vida pública portuguesa não seria o que é se houvesse um pouco mais de reconhecimento social da integridade. Se os íntegros não parecessem personalidades obstinadas, com mau feitio, “pouco maleáveis”, como agora se diz.

O Porto fez-me gostar das pessoas simples, integras, ainda não tocadas pela inutilidade das palavras, ainda não ecléticas, ainda não dominadas pelo amor-próprio destrutivo, ainda não obcecadas pelas suas virtudes e pela sua facilidade, ainda não acumulando superfícies como quem acha que a vida é um longo espelho, ainda não distraídas, ainda não impacientes, ainda querendo mais alguma coisa com uma tenacidade de absoluta dedicação. Como o Porto é feito de granito em vez de calcário, selecciona a dureza, a persistência, o trabalho, as boas contas, as “contas à moda do Porto”.

Nunca mostrei a minha cidade, mostrar de mostrar, a quem eu não ache integro."


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"Diz Alexandre Dumas que "quando se mostra a um amigo uma cidade já conhecida, põe-se nisso a mesma presunção que se usa para mostrar uma mulher de quem se foi amante."

Mas foi por partilhar consigo essa cidade “moral” e não por ociosa prova de erudição – que não tenho! – a espontaneidade do comentário. Talvez a inflexibilidade do granito, que ao Porto enobrece frontarias, tenha limitado o inchar dos egos balofos e que de si próprios, ou de quem lhes é útil, se alimentam. E depois, quem sabe, talvez o brilho da mica que reluz na mancha cinzenta granítica seja o reduto da autenticidade a fazer mais que diferença."

(Tati)

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© José Pacheco Pereira
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