semper idem
 
Ano XIII
 ...M'ESPANTO ÀS VEZES ,    OUTRAS M'AVERGONHO  ...
    (Sá de Miranda)
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       28.11.04 
    
     
     	
       
       
         
            
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  EARLY MORNING BLOGS 372
 
 A MÁQUINA DO MUNDO
E como eu palmilhasse vagamente
 uma estrada de Minas, pedregosa,
 e no fecho da tarde um sino rouco
 
 se misturasse ao som de meus sapatos
 que era pausado e seco; e aves pairassem
 no céu de chumbo, e suas formas pretas
 
 lentamente se fossem diluindo
 na escuridão maior, vinda dos montes
 e de meu próprio ser desenganado,
 
 a máquina do mundo se entreabriu
 para quem de a romper já se esquivava
 e só de o ter pensado se carpia.
 
 Abriu-se majestosa e circunspecta,
 sem emitir um som que fosse impuro
 nem um clarão maior que o tolerável
 
 pelas pupilas gastas na inspeção
 contínua e dolorosa do deserto,
 e pela mente exausta de mentar
 
 toda uma realidade que transcende
 a própria imagem sua debuxada
 no rosto do mistério, nos abismos.
 
 Abriu-se em calma pura, e convidando
 quantos sentidos e intuições restavam
 a quem de os ter usado os já perdera
 
 e nem desejaria recobrá-los,
 se em vão e para sempre repetimos
 os mesmos sem roteiro tristes périplos,
 
 convidando-os a todos, em coorte,
 a se aplicarem sobre o pasto inédito
 da natureza mítica das coisas,
 
 assim me disse, embora voz alguma
 ou sopro ou eco ou simples percussão
 atestasse que alguém, sobre a montanha,
 
 a outro alguém, noturno e miserável,
 em colóquio se estava dirigindo:
 "O que procuraste em ti ou fora de
 
 teu ser restrito e nunca se mostrou,
 mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
 e a cada instante mais se retraindo,
 
 olha, repara, ausculta: essa riqueza
 sobrante a toda pérola, essa ciência
 sublime e formidável, mas hermética,
 
 essa total explicação da vida,
 esse nexo primeiro e singular,
 que nem concebes mais, pois tão esquivo
 
 se revelou ante a pesquisa ardente
 em que te consumiste... vê, contempla,
 abre teu peito para agasalhá-lo.”
 
 As mais soberbas pontes e edifícios,
 o que nas oficinas se elabora,
 o que pensado foi e logo atinge
 
 distância superior ao pensamento,
 os recursos da terra dominados,
 e as paixões e os impulsos e os tormentos
 
 e tudo que define o ser terrestre
 ou se prolonga até nos animais
 e chega às plantas para se embeber
 
 no sono rancoroso dos minérios,
 dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
 na estranha ordem geométrica de tudo,
 
 e o absurdo original e seus enigmas,
 suas verdades altas mais que todos
 monumentos erguidos à verdade:
 
 e a memória dos deuses, e o solene
 sentimento de morte, que floresce
 no caule da existência mais gloriosa,
 
 tudo se apresentou nesse relance
 e me chamou para seu reino augusto,
 afinal submetido à vista humana.
 
 Mas, como eu relutasse em responder
 a tal apelo assim maravilhoso,
 pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
 
 a esperança mais mínima — esse anelo
 de ver desvanecida a treva espessa
 que entre os raios do sol inda se filtra;
 
 como defuntas crenças convocadas
 presto e fremente não se produzissem
 a de novo tingir a neutra face
 
 que vou pelos caminhos demonstrando,
 e como se outro ser, não mais aquele
 habitante de mim há tantos anos,
 
 passasse a comandar minha vontade
 que, já de si volúvel, se cerrava
 semelhante a essas flores reticentes
 
 em si mesmas abertas e fechadas;
 como se um dom tardio já não fora
 apetecível, antes despiciendo,
 
 baixei os olhos, incurioso, lasso,
 desdenhando colher a coisa oferta
 que se abria gratuita a meu engenho.
 
 A treva mais estrita já pousara
 sobre a estrada de Minas, pedregosa,
 e a máquina do mundo, repelida,
 
 se foi miudamente recompondo,
 enquanto eu, avaliando o que perdera,
 seguia vagaroso, de mãos pensas.
(Carlos Drummond de Andrade) 
 *
 Bom dia! 
      
 
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    © José Pacheco Pereira  
    
   
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