ABRUPTO

29.9.04


EARLY MORNING BLOGS 324

Aubade
(Philip Larkin)

Labuto ao dia e à noite me embebedo.
Acordo às quatro e fito o mudo vão.
Clareia a fímbria das cortinas cedo.
Sempre ali está, vejo por ora, e à mão,
a morte inquieta, um dia já mais perto,
a impedir de pensar salvo por certo
em como, e quando e onde hei-de morrer.
Bem árida a questão: pavor absorto
de morrer e 'star morto,
lampeja ainda e prende a estarrecer.

A mente esvai-se a olhar. Não em remorso
(bem por fazer, amor por dar, mal gasto
o tempo) ou em perfídia, porque o esforço
de uma só vida é longo a largar lastro
dos erros do começo, e talvez falhe;
mas no vácuo total que sempre calhe
à segura extinção indo em jornada
e para todo o sempre. Não 'star cá,
não ser algures e já;
nada é mais certo e mais terrível nada.

É um modo de ter medo que não passa
com truques. Bem tentou a religião,
vasto brocado musical com traça,
para nunca haver morte uma ficção,
e o sofisma que diz, Não pode um ente
que é racional temer o que não sente,
sem ver que é isso o que tememos - sem
ver, provar, ouvir, tactear, cheirar,
nada a pensar, a amar, ligar,
o amorfo do qual não ninguém.

E assim fica no fio da visão
um leve desfocar, o que arrefece
mais cada impulso até à indecisão.
Muita coisa não chega: esta acontece
e quando vem, é só medo em tamanha
furna, quando sem gente nos apanha,
e sem beber. Coragem não vale nada:
só não assusta os outros. Pôr-se à prova
não nos livra da cova.
A morte é igual, gemida ou enfrentada.

Já devagar o quarto a luz destapa.
Qual roupeiro se pode pressentir,
sempre a saber, saber que não se escapa,
e a recusá-la. Um lado terá de ir.
Eis telefones prestes nos fechados
escritórios e acorda sem cuidados
o intrincado mundo que se apraza.
Céu branco como gesso; sol, nem vê-lo.
Trabalho, há que fazê-lo.
Carteiros, quais doutores, de casa em casa.


(Tradução de Vasco Graça Moura, cortesia do próprio tradutor)

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Bom dia!

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© José Pacheco Pereira
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