ABRUPTO

5.9.04


APRENDENDO COM O PADRE MANUEL BERNARDES: TRÊS PÁTRIAS

"Qualquer homem tem três pátrias: uma da origem, outra da natureza e outra do direito. A pátria da origem é aquela em que os nossos maiores foram e viveram; a da natureza é a terra ou lugar onde cada um nasce; a do direito é onde cada um é naturalizado pelas leis ou príncipes, e onde serve, e merece, e costuma habitar: neste sentido disse Túlio de Catão que tivera a Túsculo por pátria da natureza, mas a Roma por pátria do direito.

Quanto à pátria da origem, todos os homens somos do Céu, porque ali está, vive e reina o nosso pai celestial, que vai criando as almas e unindo-as a nossos corpos.

Quanto à segunda pátria, falando geralmente, todos homens somos da Terra; por isso dela falamos tão frequentemente. Neste sentido todos os filhos de Adão somos compatriotas, sem diferença do rei ao rústico. Neste sentido, também, os que desejavam negar as imperfeições do amor a tal ou a tal terra em particular, ou por arrogância e fasto filosófico ou por mortificação religiosa e santa, disseram que todo o mundo era pátria sua. Do primeiro temos exemplo em Sócrates, que, perguntado donde era, respondeu:

– Do mundo: porque de todo o mundo sou cidadão e habitador.

E em Séneca, que disse:

– Não encerramos a grandeza do ânimo nos muros de uma cidade, antes o deixamos livre para o comércio de todo o mundo, porque esta é a pátria que professamos, para darmos campo mais largo à virtude.

Do segundo temos exemplo em S. Basílio, que, ameaçado com desterro pelo prefeito do imperador Valente, respondeu que não conhecia desterro quem não estava adicto a certos lugares.

Semelhante resposta foi a do v. p. frei António das Chagas, que, avisado por certa pessoa não falasse tão acremente nos sermões da morte, porque se arriscava a ser desterrado, disse mui seguramente:

– Desterrar-me? Para onde? Quem não tem aqui pátria não pode ter daqui desterro.

Mas, além desta pátria do lugar comum, há outra do particular, que é a terra onde cada um nasceu. Quanto esta é mais pequena, tanto une mais os seus filhos, de sorte que parece o mesmo ser compatriotas que parentes, especialmente quando se acham fora dela. E parece-se este amor com a virtude da erva tápsia, da qual escreve Teofrasto que, metida na panela com a carne a cozer, de tal modo conglutina os pedaços dela que, para os tirar, é necessário quebrá-la. Quanto, porém, a pátria é terra mais populosa, rica e ilustre, tanto costuma ser matéria de vaidade aos que põem a sua glória fora de si. Assim se esvaneciam os Arianos da sua Constantinopla, lançando em rosto a S. Gregório Nazianzeno a sua terrinha, que nem muros a cingiam. Porém o santo doutor lhes respondeu que, se isso era culpa nele, também o seria no golfinho não haver nascido na terra, e no boi não haver nascido mo mar. E, pelo contrário, se neles era glória, também o seria para os jumentos da cidade assoberbarem os do campo.

Quanto à terceira pátria, é esta o lugar onde estamos naturalizados, por mercê da república, ou rescrito dos príncipes, ou habitação continua, de modo que Sto. António se chama de Pádua, não sendo senão de Lisboa, e S. Nicolau de Tolentino, sendo de Saint-Angel. Tomando, porém, isto espiritualmente, onde cada um habita com o espírito e desejo, daí é natural. Por isso, Cristo disse a seus adversários que eles eram cá de baixo: Vos deorsum estis... vos de mundo hoc estis. E, pelo contrário, a seus discípulos, que eles não eram deste mundo: De mundo non estis.
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© José Pacheco Pereira
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