ABRUPTO

17.6.04


FADOS

De repente, apeteceu-me ouvir os CDs do Público sobre a história do fado. Apetites. Estranheza, porque sou pouco do mundo do fado, embora goste de muitas canções. Talvez porque estou a ver a série de Ken Burns sobre o Jazz, de que falarei depois. Chega de justificações. Ouço o Marceneiro gabar-se de ser marceneiro e o orgulho de ser conhecido com esse nome. Do mundo dos touros e marialvas, não sei nada, mas o mundo do Marceneiro conheço-o dos trabalhos sobre a Lisboa operária e estimo esse orgulho pela profissão, pela “arte”, hoje já arqueológico.

Recordei-me do equivalente ao Marceneiro no Porto, cidade quase sem fadistas, Neca Rafael, ou melhor, o senhor Neca Rafael, que havia mais respeito. Depois de um dia de agitação estudantil endémica e a meio de uma noite, farto de remendar os miseráveis “stencis” que se rasgavam com os sublinhados (*), ia com os meus companheiros comer um mini-prato de tripas ao “Luso”, que custavam 7$50. O local, às três ou quatro da amanhã, de uma cidade que fechava à meia-noite no máximo, era frequentado pela mais bizarra das faunas. E lá estava, sentado numa mesa, muito direito e silencioso, acompanhado por uma senhora. Os empregados, que se chamavam criados, tratavam-no com muita deferência. E Neca Rafael, já com muita idade, lá acabava por sair com a sua senhora na noite brumosa da cidade. O seu fado mais popular era “Já estás c'os copos”, com esta letra de outro mundo:

Quando vou de grão na asa
e nem dou conta de mim
abro a porta entro em casa
e a mulher canta assim

já estás c'os copos
já estás c'os copos
já estás c'os copos

Ponho-me a fazer teatro
que é para a coisa disfarçar
cruzo a perna, faço um quatro
e ela põe-se a cantar

já estás c'os copos
(canta... canta que logo bebes)
já estás c'os copos
já estás c'os copos

ó mulher ou tu te calas
ou eu ponho-te na rua
vai pr'os teus e leva as malas
e a tipa continua

já estás c'os copos
(vai.. vai dar recomendações à maezinha)
já estás c'os copos
já estás c'os copos

Vou p'ra cama e reconheço
que bebi mais um copinho
sabem que eu que adormeço
com ela a cantar baixinho

já estás c'os copos
já estás c'os copos
já estás c'os copos


(*) Nota para os tempos de hoje: o meio mais acessível para publicar comunicados era o copiógrafo que permitia, quando era de qualidade, o que raras vezes acontecia com aparelhos que eram sobre usados e estavam a desfazer-se, fazer tiragens de 1000-2000 panfletos. O elo fraco, entre muitos, era que a matriz para a reprodução era escrita à máquina numas folhas especiais, os “stencis”, plural popular de stencil, que tinham um papel especial em que a máquina de escrever furava as letras. Se se fazia um sublinhado, o stencil acabava por romper por aí e tinha que ser recolado com muito cuidado. Era uma trabalheira.

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© José Pacheco Pereira
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