ABRUPTO

10.5.04


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES

Sobre POEIRA DE 9 DE MAIO

Relativamente a Galileu li há dias um texto que me surpreendeu. Retirado de "Conjecturas e refutações" de Karl Popper capítulo 3 "Três perspectivas acerca do conhecimento humano"

1. A ciência de Galileu e a sua mais recente traição
Era uma vez um famoso cientista chamado Galileu Galilei, que foi julgado pela Inquisição e obrigado a renegar a sua doutrina. O caso provocou um grande tumulto e, durante bem mais de duzentos e cinquenta anos, continuou a gerar indignação e distúrbio – muito após a opinião pública haver conquistado já a sua vitória e a Igreja se ter tornado tolerante para com a ciência.

Mas esta é agora uma história muito antiga e receio que tenha perdido o seu interesse, pois, segundo tudo indica, a ciência galilaica já não tem inimigos: a sua vida está doravante segura. A vitória, há muito conquistada, foi definitiva, e nada perturba o sossego desta ex-frente de batalha. Lançamos assim, hoje em dia, um olhar distanciado sobre o caso, tendo aprendido, pelo menos, a pensar em termos históricos e a compreender ambos os lados de uma discussão. E já ninguém tem paciência para ouvir os maçadores que não conseguem esquecer um velho agravo.

Em que é que consistia afinal este velho caso? No cerne da questão estava o estatuto do “Sistema do Mundo” de Copérnico que, entre outras coisas, explicava o movimento diurno do Sol como meramente aparente e devido à rotação da nossa própria Terra. A Igreja estava perfeitamente disposta a admitir que o novo sistema era mais simples do que o antigo; que constituía um instrumento mais cómodo para os cálculos astronómicos e previsões. E a reforma do calendário do Papa Gregório fez pleno uso prático dele. Não havia nenhuma objecção ao ensino da teoria matemática por Galileu, desde que este deixasse claro que o seu valor era apenas instrumental; que não passava de uma “suposição”, como o Cardeal Bellarmino dizia, (*) ou de uma “hipótese matemática” – uma espécie de artifício matemático “inventado e assumido para abreviar e facilitar os cálculos.” Por outras palavras, não havia objecções desde que Galileu estivesse disposto a pôr-se de acordo com Andreas Osiander, que escrevera no seu prefácio ao De revolutionibus de Copérnico: “Estas hipóteses não precisam de ser verdadeiras ou de se assemelhar sequer à verdade; pelo contrário, basta-lhes apenas uma coisa: produzirem cálculos que se harmonizem com as observações.”

O próprio Galileu estava, como é óbvio, perfeitamente disposto a realçar a superioridade do sistema copernicano enquanto instrumento de cálculo. Mas, ao mesmo tempo, conjecturava e, inclusivamente, acreditava que esse sistema constituía uma descrição verdadeira do mundo. E para Galileu (como para a Igreja) este era, de longe, o aspecto mais importante da questão.

(*) Galileu agirá avisadamente”, escreveu o cardeal Bellarmino “… se falar hipoteticamente, ex suppositione…: dizer que descrevemos melhor as aparências supondo a Terra em movimento e o Sol em repouso de que se usássemos excêntricos e epiciclos é falar acertadamente. Não há perigo nisso, e é tudo aquilo de que o matemático necessita”

Mais à frente Popper escreve:

"Hoje em dia, a perspectiva da ciência física instaurada por Osiander, pelo Cardeal Bellarmino e pelo Bispo Berkeley venceu sem que nenhum outro tiro tivesse sido disparado."

Dá que pensar… chega mesmo a ser irónico o problema epistemológico, afinal o cardeal inquisidor estava mais próximo da visão actual da ciência do que à primeira vista parecia.


(Carlos Pereira da Cruz)


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]