ABRUPTO

6.5.04


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES - O MELHOR E O PIOR 1

Uma leitora do Abrupto, Joana, fez, durante 2004, uma leitura completa do blogue e enviou-me uma série de textos que vão muito mais longe do que a apreciação do que tenho escrito para valerem por si só e pela sua qualidade. Dois deles, sobre o "melhor" e o "pior" do Abrupto, guardei-os para esta ocasião. O que se segue é uma memória pessoal e afectiva do Porto.

O MELHOR

"É um contra senso falar nos melhores momentos, mas houve, no entanto dois textos de que gostei de uma forma especial. O texto “Decência” a 05/07 que a propósito do mar do Norte e da sua essência, fala da decência. Como mais à frente referirei para mim o mar do Norte está no Porto e ainda mais a Norte, vai de Viana do Castelo a Caminha. O segundo texto “Uma cidade que se chama Invicta” de 25 de Julho que resumiu muito do que é o meu sentimento pela minha cidade o que dela herdei, e muita da minha emoção.

O Porto, embora lá tenha nascido e vivido, cresceu tarde em mim. (…) Nessa altura o coração do Porto passava-me ao lado, e só ia à Baixa quando ia ao médico, às compras com a minha mãe a algum restaurante ou espectáculo no Coliseu. Foi na adolescência e nas primeiras saídas, de autocarro, com as amigas e os amigos, tomar chá à Arcádia ou ir ao cinema, entre outros passeios, que comecei a conhecer o Porto, as suas ruas, os seus cantos. Depois comecei a ouvir e entender os comentários e apreciações que o meu Pai fazia sobre a cidade, mas creio que o primeiro confronto (confronto no sentido de olhar de frente, de face, sem rodeios) com o Porto real o devo a Júlio Dinis e à sua “Uma Família Inglesa”. Esse romance foi um abrir de olhos e uma ajuda preciosa para entender aquilo que via, para ter vontade de conhecer melhor a minha cidade, a sua História, e mergulhar na sua condição burguesa e tradição comercial, sentir o seu palpitar. Dar um sentido às ruas, ao Ateneu Comercial, ao Águia d’Ouro, a Fernandes Tomás, à Boavista, à Foz. Posteriormente comecei a mostrar o Porto a amigos de fora e tive a sorte de o fazer muitas vezes, e fiz o que quem lá vive não faz: subi a Torre dos Clérigos, atravessei a pé a Ponte de D. Luís (tabuleiro superior) fui ao Museu Soares dos Reis, ao Museu Romântico (creio que se chamava assim), atravessei a Ribeira (que não era o que é hoje), visiteis igrejas e conheci as principais Caves do Vinho do Porto, etc., etc.

O meu segundo confronto com o Porto foi quando me apercebi da sua imensa beleza sem artifício e com a alma à vista nas suas ruas cinzentas e estreitas, nos seus bairros antigos, nas suas igrejas e praças, na marginal e nas belas pontes, na Foz com as mansões de inícios de século da avenida Montevideu e com o seu cheiro a maresia, nos bairros de pescadores, e ao mesmo tempo me apercebi daquilo a que chamo a sua mística: sempre achei que o Porto tem uma mística própria de cidade fechada e aparentemente “feia” que só se revela, abre e acolhe quem ela quer. Quando mostrava a cidade e me diziam para ir à Serra do Pilar ver a vista para o Porto protestava e nunca lá ia. Vista deslumbrante era aquela do Cais de Gaia em frente à Sandeman ao fim da tarde: o rio, o mar e a imponente silhueta recortada da cidade desvendando todo o seu mistério As cores aí são sempre surpreendentes. De cada vez que lá vou não o faço com indiferença, há sempre um aperto na garganta, um arrepio…Até hoje não vi nenhuma vista urbana tão linda como essa e já vi vistas deslumbrantes…Nessa altura estava eu na Faculdade de Letras, no Campo Alegre, e quando tinha carro ou ia no carro de uma amiga e vizinha fazíamos questão de regressar com tempo, descendo o Campo Alegre até à Pasteleira, virar no Fluvial para a marginal e fazer esse percurso até à Foz ao fim do dia e cada dia com a sua cor, e cada dia com a sua emoção, e cada dia com as suas confidências. Estas recordações tenho-as vivíssimas.

O terceiro e último confronto deu-se quando saí do Porto e me apercebi o que dele tinha comigo, e que era subtilmente diferente do que outros portugueses tinham: um gosto pelo que é genuíno, por “o que, é, é” versus “o que parece é”, em todos os aspectos da vida. Notei isto sobretudo nas relações com os ouros: o quanto era difícil às vezes as pessoas serem genuínas, manterem a sua verticalidade, serem iguais a si próprias sem excitações nem heroísmos numa sociedade que vive da aparência e do interesse ao serviço dos objectivos de cada um. Mas o ser genuíno é também, e numa visão feminina e cheia do quotidiano, usar pouco ouro e não muito dourado, ter bons lençóis na cama e só depois ter sapatos de marca, ter boa comida na mesa e partilha-la e só depois fazer férias nas Maldivas, falar do que se conhece (pessoas e coisas) e reconhecer o que se desconhece, versus entreter-se com “name dropping”. Isto é do Porto, do Norte. Herdei também do Porto o tão burguês gosto pela casa, não na versão moderna de tudo sacrificar em nome da decoração (moda em Portugal nos últimos 10 anos?), mas na versão burguesa do conforto, do acolhimento, do refúgio. Gosto de viajar, gosto, embora menos, de sair, mas a minha casa é um prolongamento do meu ser, a minha casa sou eu e espelha a minha vida não é uma coisa desligada do ser humano em nome da “decoração”. No Porto vivíamos, entre amigos meus e dos meus Pais, de casa em casa. Havia sempre lugar para mais um à mesa e se eram muitos todos ajudavam e depressa se improvisava um jantar. Conhecia, e conheço ainda todas as casas dos meus amigos do Porto. O mesmo não se passa noutros locais onde vivi e vivo. Tudo isso acabou. Só uma coisa não acabou: os meus amigos (de diferentes quadrantes da sociedade) que resistiram ao tempo, aos caprichos da vida, às separações, às aparentes infidelidades, e que são prova da solidez granítica de que fala JPP. Com alguma regularidade, mas pouca frequência vou ao Porto só para estar com eles.

O texto de JPP sobre o Porto e a integridade é lindíssimo e identifiquei-me logo com ele. Mas o que escrevi é a minha versão do “ser do Porto”, versão essa praticamente inalterada ao longo dos anos. O que sinto hoje já o sentia há dez e quinze anos atrás.

Atravessar a Ponte da Arrábida em direcção ao Porto nunca me deixa indiferente, ouvir o Rui Veloso cantar o “Porto Sentido” é sempre pretexto para me deixar levar, no meu íntimo, por um pouco de sentimentalismo fácil. Até a “Pronúncia do Norte” dos GNR com aquela belíssima voz feminina, mas com uma letra pobre, me faz efeito! Talvez porque eu seja sensível às pronúncias, sotaques, palavras e expressões, sobretudo desde que vivo em Lisboa e adore descobrir aquele “quiêa” que mesmo ao fim de muitos anos no Sul não nos deixa dúvida sobre a nossa origem, ou um “à minha beira” em vez do “ao pé de mim”!

Por tudo isto, como o percebo bem quando diz “Nunca mostrei a minha cidade, mostrar de mostrar, a quem eu não ache íntegro. Sei de quem nunca lá irá pelas minhas mãos”. A minha versão foi sempre, e ainda é, dizer “pois” de cada vez que me dizem que o Porto é cinzento ou sério e fechado (é verdade que não tem a beleza fácil de Lisboa que foi e é sede da “Corte”). Não perco um segundo do meu tempo nem da minha energia a explicar seja o que for a quem já tudo sabe, tudo entendeu. O Porto mostra-se a quem o quer ver: aí sim, então não perco tempo, partilho-o.
"

(Joana)

(Continua com O PIOR)

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© José Pacheco Pereira
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