ABRUPTO

8.4.04


IRAQUE

Neste momento, o que me lembra sempre é um discurso que ouvi de Savimbi, na Jamba. Savimbi, que era um excepcional orador, fez um daqueles discursos torrenciais, em várias línguas (português, inglês, umbundo, e outras línguas nativas). Falava para todos, para os seus homens, para os jornalistas estrangeiros, para Luanda, para os seus convidados, para Pretória, para Washington. Falou para mim directamente uma ou duas vezes, uma delas pedindo-me a confirmação de que “Salazar também ao princípio tinha feito coisas boas, mas depois não se quis ir embora, não é verdade, dr. Pacheco? ”. Eu fiquei sem saber o que dizer, porque para mim Salazar nunca tinha feito “coisas boas”. Felizmente ele passou adiante.

Mas o que me lembra hoje foi uma parte em que Savimbi disse que os angolanos tinham pago um preço muito caro pelo Vietnam e pela forma como os americanos dele tinham saído. Para mim, que combatera a intervenção americana, participara na manifestação ilegal contra a guerra, escrevera panfletos, a frase de Savimbi era o reverso que não se pensara, não se vira: o destino dos angolanos, como dos outros povos, que pagavam o preço do refluxo americano, pelo campo aberto aos soviéticos (e aos cubanos) em África. Savimbi contava como ficara sozinho, e fora empurrado para os sul-africanos pelo abandono americano, que só mudara com Reagan.

No Iraque, tudo parece tão difícil, quase impossível. Na história há momentos assim, em que cresce a vontade de largar tudo, esquecer tudo e passar para outra. Foi esse também o efeito psicológico da ofensiva do Tet no Vietnam, que hoje se sabe ter sido um acto de desespero que colocou o chamado “vietcong” no limiar da exaustão militar. Mas politicamente foi um enorme sucesso psicológico. No Iraque, está-se nesse momento “vietnamita”, numa guerra muito mais crucial para o futuro mundial do que era a do Vietnam. Os dominós existiam e tombaram com Saigão, mas o comunismo já estava oco, não iria durar uma década. Hoje é diferente.

A história também mostra que, nesses momentos de derrotismo, alguém perde muito mais do que aqueles que se podem dar ao luxo de sair, feridos, é certo, mas vivos. No Vietnam, foram os vietnamitas transformados em boat people, e os povos como os angolanos a quem falava Savimbi. No Iraque, serão, em primeiro lugar, os iraquianos, que nenhum cenário de abandono deixa sem ser entregues a um banho de sangue sectário. Depois serão os alvos da Al Qaeda, todos nós, descendentes dos “cruzados”.

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© José Pacheco Pereira
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