ABRUPTO

11.4.04


ALGUMAS NOTAS SOBRE “NATION BUILDING”


Manuel Carvalho escreveu ontem no Público um editorial com o título "A Derrocada da Nation Building", onde defende a ideia de que as nações livres e democráticas não têm qualquer legitimidade para desencadear políticas externas que levem à democratização do mundo árabe ditatorial e embrião das formas mais diversas do terrorismo actual emergente.
Afirma o jornalista que "o conceito de "nation building" não passa de uma ideologia extremista, uma combinação perigosa de messianismo com voluntarismo, que é completamente destituída de qualquer sentido da História". Ora, penso que com esta argumentação, apoiada no medo e no voltar costas ao medievalismo político em que está subjugado grande parte do mundo árabe, só engrandece os próprios terroristas, dando-lhes razão na afirmação por eles proferida de que "não queremos cá ninguém na nossa casa" (como se a casa deles fosse um antro de paz, democracia e liberdade).
Será que as nações mais desenvolvidas do mundo, onde a democracia e a liberdade são conceitos adquiridos, não têm a legitimidade de, em nome da segurança de um mundo cada vez mais globalizado e da defesa do combate à pobreza em que (sobre)vive a população árabe (pobreza essa que fomenta o ódio ao mundo ocidental), dizia, não têm a legitimidade de orientar políticas que levem à democratização do mundo árabe? Para mim, essa legitimidade é total... De facto, penso que, tal como aconteceu na Europa Ocidental, após a 2ª Guerra Mundial e na Europa de Leste após a queda do muro de Berlim, já para não falar dos casos do Japão ou da África do Sul, a melhor forma de se garantir um mundo mais pacífico e menos desigual em termos de desenvolvimento humano é, precisamente, através da criação de condições de fomento da democracia e da liberdade nos países onde reina a ditadura e a censura.
O exemplo do Iraque poderá ser o princípio de um processo de democratização de uma região do mundo onde a falta de uma educação dos jovens assente em pilares tão básicos como a democracia e a liberdade, tem levado ao fortalecimento do fundamentalismo islâmico e do ódio ao Ocidente. Urge, agora, travar esta batalha, para que as próximas gerações possam viver num mundo mais pacífico e harmonioso...


(Pedro Peixoto)

O intervencionismo político em nome de diversas variantes de “nation building” era (e é) considerado “natural”, desde que não tenha a mão do “império”, ou seja entendido contra o “império”, ou seja, os EUA. Hoje, a linha de demarcação de tudo é o americanismo / anti-americanismo, principalmente este último. Cada vez é mais importante esta demarcação, forma rediviva de nacionalismos e pós-comunismos, sob o “albergue espanhol” da anti-globalização. E quando se juntam “direitas” e “esquerdas”, quase sempre debaixo de mantos nacionalistas, ou “anti-imperialistas”, o conjunto é poderoso.

Porque “nation building” é o terminus de muito daquilo que é hoje a ideologia das relações internacionais. O “intervencionismo humanitário”, por exemplo. A guerra do Kosovo, por exemplo. A intervenção no Ruanda, na Serra Leoa, por exemplo. Se recuarmos ao passado, o que era o “internacionalismo proletário”, o programa revolucionário mundial, senão uma reconstrução do mundo feita pela revolução?

Depois a ONU, lugar actual de todas as ambiguidades. Repito o que disse ontem na SIC: caso a ONU "tomasse conta" do Iraque hoje, para além da questão crucial de saber com que tropas garantia a estabilidade do país, que “programa “ teria para a sua missão no Iraque? Seria diferente do das tropas da coligação? Entregaria o poder aos iraquianos, mas a quem? Às milícias armadas de Sadr? Aos torcionários do Baas? Deixaria a ONU as cidades iraquianas entregues aos bandos de kalashnikov que aterrorizam, antes de tudo, outros iraquianos? Abriria caminho para a guerra civil?

É demasiado simples: ou a administração da ONU seria uma fuga internacional de responsabilidades, significando uma forma disfarçada de retirada dos “estrangeiros” para os iraquianos se matarem uns aos outros, ou teria um programa muito parecido com o dos americanos. Faria “nation building” como fez em Timor, e está a fazer de facto no Kosovo.E que regime político deixaria atrás (ou tentaria deixar atrás)? Uma ditadura ou um regime democrático? Armas ou eleições?

Depois, à volta do “nation building” há os tabus que ninguém quer discutir. Por exemplo, as fronteiras. Não é verdade que ninguém mexa nas fronteiras: a Checoslováquia e a Etiópia fizeram-no. Mas em todo o resto do mundo, as mais absurdas fronteiras permanecem intactas mesmo quando são fontes de endémicos conflitos civis.
Por exemplo, a “limpeza étnica”. Tal prática era aceitável no passado: que o digam os gregos da Anatólia e os turcos da Europa, quando, sob a égide da Sociedade das Nações, se fizeram as transferências das populações. Alguém lhes perguntou se queriam ser mudados? Ninguém; os gregos do Mar Negro, que nunca tinham conhecido a Grécia, foram obrigados à força a sair das suas casas, das suas igrejas milenares, para irem para um país desconhecido. Pelas Nações Unidas da época.

(Continua)

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© José Pacheco Pereira
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