ABRUPTO

22.2.04


SOBRE SENSIBILIDADES ANTIGAS: ÁJAX

Por exemplo, Ájax, o senhor de Salamina, na tragedia de Sófocles. Na tragédia, Ájax, cheio de raiva por ter sido preterido na distribuição das armas de Aquiles, tem um acesso de loucura e mata os animais do exército, convencido de que estava a matar os seus rivais. Acordado da sua loucura, mostra-se predisposto ao suicídio para reparar a sua honra, e todos o tentam dissuadir. Num primeiro momento, Ájax parece desistir, o que enche de felicidade os seus companheiros, mas depois mata-se atirando-se para cima da sua espada, numa cena de suicídio diante dos espectadores, rara na tragédia clássica.

Que faz Ájax de diferente, de “antigo”? Suicida-se para reparar a sua honra perdida, suicida-se por dever. Ele não é um guerreiro derrotado, ele não conduziu os seus homens à morte, ele não tem, como o samurai que comete harakiri, qualquer fidelidade para com o seu senhor que o deva levar à morte ritual. Ele é um guerreiro livre, rei de si próprio, reconhecido como o mais corajoso depois de Aquiles. A sua independência, associada às suas virtudes marciais, tornavam-no universalmente temido e odiado pelos seus pares. Como o seu amigo Teucro afirmou, não viera para Tróia por razões em que

all the argument is a cuckold and a
whore


(Shakespeare, Troilus and Cressida)

mas pelo seu juramento. Era fiel ao seu juramento, estava lá. Detestava Ulisses, Menelau, Agamémnon.

Como acontece em todas as tragédias, ele não era o verdadeiro culpado, o culpado subjectivo, visto que os deuses (Atena, neste caso) o levaram a cometer tal acto num momento de loucura. Mas tinha uma culpabilidade objectiva, que levou à punição divina: perdera a “sensatez” no seu conflito de invejas e rivalidades com os seus pares. É esta combinação entre a sensatez, a honra e a reparação última da honra pela morte nobre que não é moderna.

(Continua)

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© José Pacheco Pereira
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