ABRUPTO

23.2.04


SOBRE SENSIBILIDADES ANTIGAS: ÁJAX 2

A peça de Sófocles tem duas partes distintas: uma, mais valorizada, o conflito de Ájax com a sua honra perdida e o seu suicídio; outra, a discussão muito violenta sobre se o seu corpo deve ou não ser enterrado. É uma discussão semelhante à de Antígona, mas que, nalguns aspectos, me parece mais interessante porque envolve não apenas a autoridade do Estado, mas também a autoridade militar, a autoridade de homens de armas sobre homens de armas. A autoridade não entre diferentes, mas a autoridade entre iguais.

Aparentemente, todos os sentimentos presentes em Ájax são-nos contemporâneos: a honra, a amizade, a devoção amorosa e filial, o respeito pela autoridade, a fidelidade aos costumes, etc. Aparentemente, porque, como muitas vezes acontece na leitura dos antigos, tudo parece semelhante, mas há um átomo de diferença crucial. Esse átomo de diferença é quase sempre minimalista, um nó de estranheza, uma incompreensão, que nós, modernos, tomamos como sinal de anacronismo. É mais do que isso: é sentir diferente.

Por exemplo: o papel da violência, traduzida no espectáculo da crueldade. Toda a peça está cheia de descrições da morte que traduzem uma familiaridade intensa com a morte violenta. Em Ájax, são animais que parecem degolados, esquartejados, rasgados nos quadris, com a espinha quebrada. São animais, mas Ájax pensava que estava a matar homens, e a cada ferida mortal num animal, a cada tortura que ele lhes queria infligir, é para um humano que a sua espada se dirige.

É este espectáculo repulsivo para os companheiros de Ájax? É somente na medida em que é o sinal da loucura do guerreiro, nada mais. Fora disso, é trivial, normal, mesmo educativo, fossem animais ou homens. Ájax considera que o seu filho tem que naturalmente ver a cena da carnificina dos animais, porque o quer educado para seguir o pai, ser guerreiro:

Ergue-o, ergue-o até aqui. Ele não se atemorizará ao ver esta carnificina de há pouco, se na verdade sair ao pai. É preciso treiná-lo como um poldro nas duras regras do pai e igualar à dele a sua natureza. Ó filho, que sejas mais feliz que o teu pai, mas igual em tudo o mais. E que nunca sejas vil.”

(Tradução de Maria Helena Rocha Pereira, Sófocles , Tragédias, Coimbra , Minerva, 2003. Esta será a tradução utilizada.)

O nó “antigo” traduz-se aqui pelas “duras regras do pai”.

(Continua)

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© José Pacheco Pereira
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