ABRUPTO

1.2.04


ORGULHO 8 / NOTAS SOBRE AS FORMAS ANTIGAS DE SENSIBILIDADE

Bernardo tem agora pressa de acabar. Já tudo voa baixo. O corvo pousou no chão, não na árvore. Os presságios acumulam-se. Ontem, ao fim da tarde, um grupo de pássaros começou de repente a cantar sem nexo, quebrando o silêncio. Bernardo pensou que a sua voz era a das almas perdidas no Inferno. Pensou na Virgem para afastar o mal. Pensou: para que faço eu isto, se não vale a pena? O demónio terá sempre melhor colheita, os tempos estão para a “ligeireza do espírito”. Olhou outra vez para fora, para a neve, com o mesmo olhar com que, anos mais tarde, escolheu o vale da amargura, o Vallée d'Absinthe, para construir, com os seus onze companheiros, a sua abadia.

Recomeçou. Encheu-se da crueldade de Deus, para além do cansaço, da febre e da doença, e continuou a falar do orgulho. Bernardo sabia que o orgulho era , por assim dizer, “dialéctico”. Faz parte da sua infinita plasticidade fazer de conta que sofria, que hesitava, quando já tinha em si a direcção do pecado. Escreveu:

"Il y a des personnes qui, lorsqu'elles s’entendent reprocher des choses par trop manifestes, comprennent que, si elles entreprennent de se justifier, elles ne réussissent point à se faire croire, ont recours à un moyen plus subtil de se tirer d'affaire, et répondent par un aveu plein de fourberie de leur faute: « Il en est en effet, est-il écrit, qui s'humilient malicieusement et dont le fond du coeur est plein de tromperie (Eccli., XIX, 23). » Ils baissent les yeux, courbent la tête et font briller, s'ils le peuvent, une ou deux larmes ; leur voix est étouffée par les soupirs et leurs paroles sont entrecoupées par les sanglots”

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© José Pacheco Pereira
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