ABRUPTO

21.6.03


À DISTÃNCIA MAS TÃO PERTO

A equipa da Psicossomática enviou para o Abrupto mais uma contribuição para a discussão sobre os blogues, desta vez a propósito do artigo de ontem no DNA de Pedro Rolo Duarte.

O tempo e o modo da sua carta (agora chama-se e-mail mas é uma carta) são pouco comuns para esta comunidade. A Susana ( com o acordo do Diogo e do Heitor) escreve-me dos “tempos mortos” de uma urgência hospitalar, devido ao “descanso dos utentes (normalmente as urgências só costumam “animar” no domingo à noite entrando pela segunda-feira, agora é tempo de praia e o descanso dos utentes é o nosso descanso também e, ironicamente, dos mais idosos que ficam por aqui abandonados pelas famílias mais “ocupadas” com o lazer e que portanto se “desocupam” dos incómodos pais e avós “largando-os” nas urgências antes das férias, das “pontes”, tantas vezes dando moradas falsas e telefones inexistentes!) “.

O olhar, vindo de onde vem, ganha em distância:

O artigo de PRD me parece muito interessante e igualmente próximo daquilo que já lhe manifestámos e que colheu nas nossas observações do movimento blog ao qual pertencemos durante o tempo que julgámos necessário e que os azares informáticos também “ajudaram” a determinar (a nossa “deformação” profissional acrescentaria qualquer consideração freudiana mas abstemo-nos de entrar por esse vasto e fértil campo!). PRD começa por descrever o comportamento de um blogger de uma forma desassombrada e que julgamos corresponder, grosso modo, ao que temos observado na blogosfera e que se prende com outros problemas que vão, cada vez mais, fazendo parte do dia a dia de qualquer psiquiatra e psicanalista que ouve queixas de mulheres cujos maridos as teriam “trocado” pelos computadores, homens e mulheres cujo único meio de contacto com o mundo real é através do mundo virtual, homens e mulheres que se servem da Internet para exprimir, exibir ou “resolver” patologias tão diversas como diverso e imperfeito é o mundo que vivemos. Um mundo feito de solidões, de infelicidade mal disfarçada, de uma velocidade que tapa o sol com a peneira que “obriga” os profissionais da saúde a um “upgrade” fundamental (Eduardo Prado Coelho escreveu, aqui há tempos, um “fio do horizonte” que apesar de alguns erros punha o dedo na ferida do sofrimento mental)

Observar, a título exemplar, as horas a que se “posta” é um dado curioso a juntar ao que vamos sabendo. A título de exemplo podemos assinalar estas horas que marcam os posts de um blogger num mesmo dia: o último post é feito de madrugada (3:54:03) e o da manhã marca 10:17:12 naquilo que é um padrão desse blogger e da maioria dos bloggers. O que se retira desta observação é apenas este padrão que, pensamos, deve corresponder a um outro padrão de vida e comportamento destes bloggers.

Julgamos que o mundo virtual é tão rico em informação (a tal gigante biblioteca) como pobre no confronto real (corpo a corpo, olhos nos olhos) com a desilusão que a realidade oferece e que, para muitos, é insuportável pelo que carrega de frustração. O mundo virtual, em que se incluem os blogs e até o pensar dos blogs, é um mundo mais protegido e protector.

Curiosamente, recebemos um mail de um blog “Bouvard e Pécuchet” que faz um apanhado humorístico de posts (a que chamam postolos) dos blogs e não o vimos linkado em nenhum dos blogs (e foram muitos) que consultámos (para uma comunidade que exibe tanto humor e que desmonta a imprensa escrita com gozos de todo o tipo ou até análises sérias, o silêncio em torno de blogs que criticam blogs tem um peso simbólico que conviria analisar)

Os estudos da psicóloga do MIT, Sherry Turkle, a propósito da comunidade hacker encontra nesta comunidade blogger um importante paralelo que se refere ao investimento de horas no computador e comportamentos do tipo compulsivo. Sublinhe-se ainda que a comunidade hacker, mais aparentada com a estrutura das seitas secretas, faz a sua passagem para a vida real, sem que esse seja o seu objectivo, através das empresas de software que vão escolhendo os melhores elementos para criação de melhor produto comercial. A comunidade blogger transita da vida real para a virtual para, eventualmente, poder viver a vida real de outra forma, ou com outro tipo de ganhos.

É igualmente curioso verificar como se organiza a comunidade blogger através de grupos de elite que se apoiam entre pares, atacam ou ignoram os considerados “corpos estranhos”. Recorrendo aos links, à expressão “amigo/a”, por exemplo, podemos “arrumar” os bloggers em grupos e sub-grupos sem dificuldade. Há um blog “Cruzes Canhoto” que o mostra sob o seu ponto de vista, subjectivo, mas que consideramos muito intuitivo e próximo da realidade
.”

Obrigada à Psicossomática por participar num interesse que nos é comum, com o olhar mais desapiedado da "análise".


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VERDADES NO REINO DAS FRASES CURTAS


Portugal é o estádio da Europa”, dizem os reclames do Euro 2004. Os portugueses já suspeitavam. Os estrangeiros já sabiam.

Não há jornalismo público e privado, mas há bom e mau jornalismo” disse Rodrigues dos Santos . É uma absoluta verdade. Mas se é assim também não há “televisões públicas e privadas, mas boas e más televisões”, e eu não vejo razão porque é que os portugueses têm que pagar dos seus impostos uma televisão que é tão má como as outras e, às vezes, tão boa como as outras.

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PRISÕES

João Nogueira no Socio[B]logue continua a discussão iniciada aqui com os “dois tempos” . Algumas notas complementares:

1. A questão dos “dois tempos” tinha para mim um duplo sentido. Um, é o da diferente percepção psicológica do tempo prisional e do tempo “exterior”. Temos debatido esta parte. Mas há uma outra dimensão que também estava presente na nota inicial, que deliberadamente não referia Cunhal : o de como, na narrativa da biografia, se compatibiliza um tempo em que acontecia tudo e um tempo em que não acontecia nada. “Nada” não era para ser tomado à letra, mas significava o domínio de rotinas – uma vez descritas, repetem-se sempre e por isso não se prestam a uma narração . Ou seja: como é que se puxa um fio narrativo através de uma contínua e programada repetição de gestos, que em si não tem novidade. A resposta que dou no livro é a óbvia – através do que Cunhal lê, escreve, desenha e pinta na cadeia.

2. O caso de Cunhal é singular e por isso não se pode generalizar, mas também não pode considerar-se como adquirido que, enquanto preso, foi totalmente imune aos efeitos do encarceramento. Bem pelo contrário, alguns desses efeitos podem ser documentados e faço-o no livro: doenças com uma componente psicossomática, traços de depressão, etc.
O principal testemunho de Cunhal da sua passagem pela Penitenciária é o Estrela de Seis Pontas que, como toda a ficção de Cunhal, é puramente autobiográfica. Tudo o resto ou desapareceu, foi cuidadosamente retirado dos arquivos (por exemplo na Penitenciária existem registos herdados de Bocage, mas nada há sobre Cunhal e Galvão, “desapareceu depois do 25 de Abril”), ou está indisponível. Por isso temos que nos ficar pela Estrela, onde existem, como nas Memórias do Cárcere de Camilo, elementos para descrição do mundo prisional que apontam para os efeitos do encarceramento no autor. No entanto, o que é mais interessante no livro é o nítido processo de identificação de Cunhal com os presos comuns.

3. O mesmo se pode dizer dos desenhos, a que dedico grande parte de um capítulo, onde também é nítida a efabulação de uma relação com um mundo exterior que contrasta com a estéril “presença” visual do mundo prisional. Visitei a Penitenciária, refiz os trajectos possíveis de Cunhal dentro da cadeia, olhei da sua cela para fora, e a pobreza e a tristeza de “vistas” é absoluta.

4. Quanto à cela como “espaço de liberdade”, inteiramente de acordo. São os “outros”, como diria Sartre, que são muitas vezes o inferno. Por isso, a cela pode ser o espaço da “solidão desejada”, mas é-o certamente da “solidão indesejada”. É talvez aqui também que a questão da privação sexual se coloca com mais agudeza. Cunhal na Estrela de Seis Pontas retrata a omnipresença da sexualidade efabulada e real na cadeia com bastante rudeza e realismo.

3. Depois há outros efeitos da “dualidade temporal”, que neste caso são relevantes, como seja o atraso ou a ignorância por parte do preso de acontecimentos fundamentais para a sua visão do mundo e, mesmo para a sua estabilidade psicológica. `Tudo indica, por exemplo, que Cunhal só soube durante o seu julgamento da vitória dos comunistas chineses.

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A HISTÓRIA NO REINO DAS FRASES CURTAS

Paulo Agostinho escreveu-me de novo fazendo a ligação entre a discussão sobre a história e o império do soundbyte, explicando porque é que a “ história não cabe no Reino das Frases Curtas” :

Creio que o soundbyte está bem assimilado pelo público, pelo meu público (infantil) e pelo grande público (o que vê televisão preferencialmente a ler os jornais). De tal forma que muitos políticos o aceitam e orientam os discursos de forma a gerar um soundbyte, pois sabem ser esta a chave que lhes permite entrar em casa dos cidadãos, através da televisão. A escola (que como todas as instituições é conservadora), resiste a aderir ao soundbyte, mas é um esforço inglório. Ao professor é dada uma escolha: ou entra no "Reino das Frases Curtas" ganhando a atenção dos alunos e pondo de lado o rigor da explicação fundamentada, as nuances, os cinzentos que sombreiam toda a realidade, ou recusa-se a aderir ao soundbyte e perde o seu público. O trágico desta escolha é que em ambas as hipóteses o rigor da informação está ameaçado e a função de ensinar é substituída pela de entreter.

As frases curtas ficam no ouvido, são facilmente repetíveis em segundos de noticiário e insinuam uma realidade marcada por um dualismo reconfortante: há os maus e os bons, a direita e a esquerda (a ordem não é arbitrária, se estivermos atentos aos noticiários), os fumadores e os não-fumadores, os ortodoxos e os renovadores, os americanos e os inimigos da globalização, Israel e os palestinianos...
E a História no meio de tudo isto? A um público reconfortado por uma realidade a preto e branco e habituado à frase curta, como se pode pedir que goste de história, que pense sobre o seu passado e procure a partir dele explicar o presente?

No "Reino das Frases Curtas" o tempo é efémero. É o tempo da palavra falada. Quando muito, é o tempo da palavra impressa em papel de jornal cujo eco, como todos sabemos, soa por um dia ou por uma semana, no máximo. Uma sociedade que tem esta noção de tempo não pode, de modo algum, aceitar o conceito de tempo histórico. Recusa-se a aceitar que o passado seja a causa dos problemas do presente. Vejamos o exemplo do Iraque. A explicação para a intervenção americana encontra-se no petróleo (que é o presente, existe, está lá, provavelmente prestes a cair nas garras das petrolíferas americanas) e não no terrorismo do 11 de Setembro (que é passado). A 12 de Setembro ainda se aceitava dizer "Somos todos americanos" (belo soundbyte), mas tanto tempo depois o eco já não se ouve. Ou melhor, ouve-se, mas não no "Reino das Frases Curtas".



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LINGUAGEM

A linguagem, caro Pedro, até é a forma principal das pessoas se esconderem.

Sobre isso repito o que disse Pessoa "quando falo com sinceridade, não sei com que sinceridade falo".

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20.6.03


PORTUGALIAE MONUMENTA FRIVOLA

Primeiro, é um grande título, Portugaliae Monumenta Frivola , parece um nome de blogue. Depois o livro de Eugénio Lisboa, que já saiu há uns anos, e que, com a distribuição errática das livrarias, é difícil de encontrar, tem uma liberdade de espírito rara nas nossas letras. Entre outras coisas estão aí ensaios sobre o cruel mundo das invejas literárias portuguesas, sobre autores quase esquecidos como Domingos Monteiro, tão rapidamente ignorados, uma polémica mais que actual com António Barahona (Muhamad Rashid), e umas listas do tipo das que a Montanha Mágica sugeriu.

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MAIS UM

que não fala sempre do mesmo: o Socio[B]logue do João Nogueira, meu interlocutor sobre prisões, solidões, e tempos árduos. Colocado sob a égide da Marginalia de Poe :

" sobre o seu fascínio pelas anotações, apontamentos e comentários com que coloria abundantemente as margens dos seus livros. Essas notas anódinas – nas suas palavras ‘scribblings’, ‘pencillings’ e ‘marginal jottings’ – constituíam, em sua opinião, lembretes imprescindíveis na reconstituição do texto; embora se tornassem desprovidos de significado e ininteligíveis se separados, isolados ou subtraídos do seu contexto original. Este blogue é, também, ou sobretudo, de alguma forma, uma compilação desses ‘scribblings’, ‘pencillings’ e ‘marginal jottings’ que tanto fascinavam Poe. Sociológicos, claro."

O Socio[B]logue contribui, em conjunto com muitos dos blogues aparecidos no último mês e com os melhores dos pioneiros que já cá estavam, para que a blogosfera não tenha centro e funcione pela lei dos grandes números, oscilando num e noutro sentido, exercendo o seu efeito nos que nela entram de muitas e variadas maneiras. Cintilando.

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DOIS TEMPOS 2

Os “dois tempos” da minha nota anterior eram obviamente sobre a prisão de Cunhal, em cujo terceiro volume da biografia estou a trabalhar, e que cobre os anos da prisão de 1949 a 1960. João Nogueira escreveu-me comentando os “dois tempos” na base do trabalho sociológico que nos últimos dois anos tem estado a fazer “sobre prisões e encarceramento”. Levanta a seguinte objecção à “dualidade temporal” :

O tempo «dentro» não é «linear» (ou, se quisermos, «linearmente lento»), quando se procura fazer uma «fenomenologia da vida prisional». Com efeito, em boa parte das etnografias prisionais que li até hoje, é notória a existência de diversas fases na percepção da passagem do tempo por parte de reclusos (sobretudo, em reclusos com penas de longa duração). Veja, a título exemplificativo, o que me dizia um ex-recluso condenado a uma pena relativamente extensa (9 anos) em sede de uma «entrevista biográfica» (história de vida/ estória de vida).

Segundo a sua «experiência vivida» afirmava existirem três fases distintas na percepção da passagem do tempo:

"O tempo na cadeia tem três fases. Tem a fase inicial que custa muito... de adaptação. O tempo custa muito a passar. Depois o do meio, passa-se num instante: 'O quê já passaram quatro anos...' Depois no final é a ansiedade, quando se aproxima a saída. Aí o tempo volta a ser muito lento. Mas na fase do meio nem se dá por ela passar. Não se vive, vegeta-se... A entrada custa a aceitar... A adaptação áquele ambiente, os problemas, a vida cá fora, o que se deixou, os crimes, as perspectivas de vida... às vezes pensa-se na evasão. Depois pensamos: 'Isto é uma fase de passagem... vamos lá ver se me aguento cá dentro'. É a parte mais difícil. Depois uma pessoa mentaliza-se... Passa muito rápido. Depois vem a ânsia de viver. A ânsia da liberdade." (Ex-recluso)

Assim, no período inicial, de adaptação à prisão, de assimilação da cultura penitenciária e de internalização dos tempos institucionais, o tempo custa muito a passar ["Você não imagina como é acordar a noite inteira, olhar para o relógio e ver que só passou uma hora, às vezes meia... uma pessoa pode enlouquecer à espera do dia seguinte. É um tempo muito lento... muito lento. E custoso, obviamente." (Ex-recluso).

Na fase que se segue, pontifica o sentimento do tempo parado e inerte, onde os rituais quotidianos são incorporados e os dias passam sem se dar conta. Na última etapa, regressa o tempo que custa muito a passar, devido à enorme ansiedade provocada pela proximidade da libertação. Ademais, esta percepção do tempo não é universal (e é, na verdade, algo teleológico argumentar que todos os reclusos passam por estas três fases) e muitos reclusos, apresentam diferentes maneiras de experienciar a passagem do tempo. As tempografias da experiência de reclusão são, por conseguinte, muito heterogéneas.

Assim questiono-me porque tentar dar uma noção de imobilidade «lá dentro». Porque não dar uma noção menos linear da evolução da percepção do tempo lá dentro, com as suas flutuações, mutações, hesitações, etc...? Fica a sugestão
.”

O meu problema é que lido com um caso individual, não generalizável, de um preso político, altamente motivado, numa cadeia de presos comuns, numa situação de isolamento sui generis, que tem que ser analisado como político, mas também como homem que está preso, sujeito aos efeitos e perversões da vida carcerária. Tento fazê-lo em dois capítulos do livro, um dos quais intitulado provisoriamente “estratégias contra a solidão”. Quando li a literatura sobre o encarceramento e os seus efeitos, era para mim claro que alguns dos efeitos de interiorização do regime prisional aí descritos, alguns inclusive de identificação com a instituição prisional, não se verificavam dada a força de resistência psicológica do preso, fruto da sua personalidade e da motivação política e ideológica. Mas, nem tudo era assim tão simples.

No entanto, mesmo aqui, tive que me defrontar com a diferença entra a situação dos presos políticos numa cadeia onde só há presos políticos (Peniche ou o Tarrafal por exemplo) e em que estes se defendem da institucionalização criando uma “contra-sociedade” na prisão (aulas, estudo em comum, caixa de solidariedade, actividades partidárias, direcção política das actividades, hierarquia própria ), com o caso de Cunhal que permaneceu longos períodos de prisão isolado. Aí não há esse efeito de “contra-sociedade” limitando os efeitos da “instituição total”.

Por último, a percepção do tempo vivido, sendo psicológica, é também neste caso, afectada pela importância de uma filosofia individual da acção, impregnada pela história, que corre … cá fora.



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O REINO DAS FRASES CURTAS

Dedicado ao Posto de Escuta

Lukács (cito de memória) gabava-se dos seus textos serem difíceis de citar como se fosse um mérito. Dizia ele que o pensamento racional, racionalista, como era argumentativo não se prestava à citação curta, precisava de espaço para se explicar. Confrontava-se assim com Nietzsche, citado com facilidade exactamente por ser o paradigma da irracionalidade. O fulgor estético de Nietzsche quase que incitava à citação da frase curta, que aparentemente diz tudo, e, para Lukács, não dizia nada.

Para o argumento não vale comparar a autoridade de Lukács com a de Nietzsche, ganha sempre Nietzsche. Não sou da escola de Lukács, nem concordo inteiramente com ele (mas quem me manda citar Lukács nestes dias, já era “passado” quando eu o li … e só serve para confirmar as suspeitas do estalinista lurking inside me, like the Thing) mas , nestes dias de soundbyte, de “frases do dia”, vale a pena pensar no que “não passa” lá fora e aqui, no Reino das Frases Curtas. Do que não cabe.

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PRESENÇA DA HISTÓRIA

A ausência da história nos blogues, como aliás no discurso corrente, foi um tema a que me referi logo nos primeiros dias do Abrupto. Comparado com o número de comentários sobre os “objectos em extinção” (que tinha um traço de história, mas era também directamente vivencial) e sobre a leitura, nunca houve grande resposta sobre a história, confirmando as suspeitas. Quando ontem comentei a ausência de referências ao 11 de Setembro, mesmo apesar da sua relevância para o debate político actual e da sua absoluta contemporaneidade, penso que também existe uma recusa à consideração do tempo histórico como mecanismo de mediação.

Escola e comunicação social são hoje os principais factores de socialização, com a família, que nos “fazem”, por isso são inseparáveis. (Uma discussão acessória, que noutra altura desenvolverei, é a de saber a ordem de importância da família, escola, e comunicação como cultura de massas na socialização das gerações presentes). Paulo Agostinho escreveu-me, relatando a sua experiência de professor e de leitor, a propósito da história :

"Esta é, pessoalmente, uma questão angustiante porque vivo da história, ensino-a (este ano) a noventa crianças de Trás-os-Montes. Peço-lhes muitas vezes que o façam, que pensem sobre a história de que falamos nas aulas. Nos testes, arrisco uma ou duas questões que exigem essa reflexão (naturalmente doseada face à idade). Qual o resultado? Um confrangedor silêncio. Confrangedor para mim, pois sinto que falhei. Sinto-o sobretudo quando crianças (que se julgam bons alunos e têm notas de bons alunos) apenas conseguem repetir o que encontraram no caderno e no livro.

Em conversa com um amigo meu sobre este assunto, aventurámo-nos a colocar algumas hipóteses. Eis a principal: na escola não se pede que os alunos façam reflexões baseadas na realidade. Ou se pede uma memorização dos factos, ou uma reflexão apenas assente na imaginação. Nas disciplinas de língua portuguesa não se ensina a ler, a escrever, a compreender o que se leu e a expor o pensamento. Muitos dos alunos que tenho encontrado em seis anos de ensino não conseguem expor um pensamento próprio de forma clara, por isso defendem-se memorizando os pensamentos e as opiniões do professor e do autor do manual. Naturalmente, muitos não gostam de história. Não os censuro. Eu também não gostaria, se o rosto da história fosse aquele que se vê nos manuais escolares, uma compilação de dados, conceitos e explicações ultrapassados, mal escritos, caoticamente organizados e mal ilustrados.

Basta olhar para o programa do 9º ano para ver o caos daquela estrutura. Passo a alinhar as matérias seguindo a ordem do manuais (e do guia do ministério):
1-Partilha de África e Conferência de Berlim;
2- I Guerra, com as alianças, a guerra de movimentos e de posições, a entrada dos americanos e o armistício;
3- Participação de Portugal na guerra (com explicações que ignoram totalmente os estudos de Vasco Pulido Valente);
4- As consequências da I Guerra;
5- A Revolução Soviética, com um longo preâmbulo sobre a Rússia no tempo do último czar, o Domingo Sangrento, a Revolução de Fevereiro, a Revolução de Outubro, o Comunismo de Guerra, e a NEP;
6- Depois de tudo o que ficou para trás, deveriam os alunos estudar a Implantação da República em Portugal. Regressa-se ao tempo do Ultimato, fala-se do regicídio, da implantação da República, e avança-se até 1926. Tudo isto depois de, um mês antes, de ter falado da participação de Portugal na guerra de 1914-1918. Existe uma lógica nesta estrutura? Talvez haja, mas eu não a percebo (e os alunos muito menos, pelo que a história é, para eles, nada mais que um retalho feito de episódios soltos e sem ligação entre si).

Infelizmente, no secundário a falta de reflexão mantém-se e julgo não errar muito se disser que os alunos do ensino superior, salvo raras e honrosas excepções, não diferem muito dos anteriores.

Os nossos jornais e a restante comunicação social também não reflecte sobre a história, sobretudo porque a desconhece ou porque possui delas ideias gerais (muitas vezes nada mais que ideias feitas por vezes mais próximas do campo da lenda que da realidade histórica). Mas também porque dá trabalho, exige leituras e consultas, exige confirmar dados, citações, exige uma permanente actualização sobre a produção historiográfica. Tudo isto consome tempo que os nossos jornalistas seguramente não possuem, ou se o possuem gastam em outras tarefas.

Pensar a história implica conhecê-la bem e, para isso, precisamos de tempo, disciplina, vontade, gosto, precisamos de compreender a sua importância. Este último aspecto parece-me essencial para se perceber por que razão não se pensa sobre a história. A escola, como se viu, é (quase sempre) incapaz de mostrar que a história é importante. Os alunos citam, sem saberem, uma das personagens amigas da Mafalda (Quino, claro), que exige que a história lhe seja ensinada para a frente e não para trás, porque o que passou já não interessa. E os media também não usam a história para explicar o presente. Não se lhes pede que o façam sempre, mas houve e há situações que o exigem. A guerra da Jugoslávia pareceu a todos um acontecimento ilógico e a roçar o absurdo porque não se explicou o que eram os Balcãs e qual era o passado da Jugoslávia. A história do Estado de Israel também não é referida. E, para fazer referência ao caso da actualidade, para muitos a pedofilia e práticas sexuais com menores parecem males dos tempos modernos e claros sintomas do fim dos tempos, quando são, na verdade, práticas do início dos tempos.

Concluindo, a escola faz da história um relato sem sentido de factos passados e a comunicação social dá-lhe o golpe final ignorando-a.
"


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19.6.03


TEORIA DAS TEMPERATURAS (2ª versão)

O general Kaúlza de Arriaga tinha uma teoria sobre a correlação entre a inteligência e o calor. Achava ele que, quando se caminhava para sul, o pensamento diminuía porque estava mais quente. No norte, o frio aguçava o espírito. Imaginem a ideia que ele tinha dos pretos.
Mas nestes dias eu fico resolutamente kaulziano. Quero é ir para o Norte. Quero pensar e o termómetro não deixa. Por favor não me enviem correio a dizer que o frigorífico chega para o refrigério, ou que nem a 0 Kelvin sou capaz de pensar. O que vale é que o Círculo Polar Ártico me espera.

Depois de publicado o que está acima , Ricardo Coelho mandou-me a seguinte objecção :

"Quando escreve "...ou que nem a 0º Kelvin sou capaz de pensar...", não entendi o que tenciona dizer com isso. Penso que sabe que a temperatura 0º K, é a temperatura absoluta, e nunca foi atingida. É uma das grandes batalhas da física experimental, tentar chegar a temperatura tão baixa. A temperaturas tão baixas (da ordem de algumas dezenas de graus Kelvin) muitos materias (supercondutores) têm características físicas fora do vulgar. Como o próprio nome indica, não oferecem resistência à passagem de electrões, porque a esta temperatura, crê-se a nível teórico que os materias se encontram bastante ordenados... Logo creio que se atingissemos esta temperatura (claro que primeiro morríamos...) as nossas ideias ficariam tão organizadas, que qualquer um, independentemente de que factores nos pudessem distinguir, teria muito melhores capacidades de pensamento."

Era uma ironia, mas a objecção é excelente! Considere-se a temperatura acima mudada para 3 Kelvin , a temperatura da radiação cósmica de fundo, o nosso fóssil cosmológico, e aí sempre se pode garantir um pensamento pelo menos bizarro, mas que vem de todo o lado (talvez).

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CIDADES MORTAS

Já há algum tempo que estou a ler o livro de Mike Davis, Dead Cities . É um conjunto de ensaios, pelo que umas vezes leio um, depois outro. Davis ficou célebre quando escreveu City of Quartz , um livro premonitório para compreender os tumultos de Los Angeles.
O tema do livro é a destruição apocalíptica das cidades, a “morte” das cidades, uma questão que me interessa e sobre a qual escrevi a propósito de uma introdução às Lamentações, tidas como sendo de Jeremias. A destruição de Jerusalém é o modelo dessas “mortes” reais e simbólicas, uma constante na nossa tradição ocidental. Vulcões, inundações, bombardeamentos aéreos, tumultos, saques onde não fica pedra sobre pedra, terra salgada (Cartago), explosões, hecatombes, ar envenenado, incêndios – são a matéria deste livro. O que se percebe muito bem é a adequação do nosso viver urbano à destruição apocalíptica, como se percebeu no 11 de Setembro. Torna-se fácil.

Porque será que já ninguém se lembra do 11 de Setembro? Fiz uma rápida pesquisa com o Google nos blogues de língua portuguesa e contam-se pelos dedos de uma mão os portugueses que se lhe referiram. Pelo contrário, nos brasileiros, são centenas e centenas de observações. Mesmo deduzindo-se que há muitos mais blogues no Brasil e alguns contemporâneos do 11 de Setembro, não chega. É mesmo do que se pensa e do que se discute entre nós. Aponta para um padrão de interesses e desinteresses.

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DOIS TEMPOS

Estou a escrever um livro (talvez acabe estas férias) que tem um problema complicado a resolver. É um livro sobre um homem que está preso onze anos, cuja vida no mundo carcerário é controlada ao milímetro, e cujos gestos possíveis e permitidos representam uma rotina imposta à força. Apitos, acender e apagar de luz, horários impiedosos. A prisão é, nos primeiros anos, uma materialização arquitectónica de uma ideia filosófica : o Panopticon de Bentham. Feita para tudo ser visto a partir de um olho central, o local último do poder. A “estrela de seis pontas”. Depois de quase um ano, em que não foi autorizado a fazer nada, o homem lê, estuda, escreve, desenha e pinta.
Cá fora há uma guerra, fria , mas guerra. Acontece tudo. O tempo é solto, é rápido, é o tempo da modernidade, acelerado. Como juntar num mesmo movimento tanta imobilidade e tanta rapidez?

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CONSTITUIÇÃO EUROPEIA

O debate sobre a Constituição Europeia já está a começar a viciar-se. Está a centrar-se nas questões institucionais, onde os resultados dependem dos arranjos entre os governos em Salónica, e a aceitar como adquirido tudo o resto. Ora tudo o resto contem muitas coisas que não deveriam de todo estar adquiridas, porque abrem caminho à tendência de pensar a Europa como um país.

Num documento de trabalho que recebi de um defensor da Convenção enumeravam-se assim alguns dos “sucessos” da Constituição : integração da Carta dos Direitos Fundamentais, como uma “legally binding part of the Constitution” ( o documento é em inglês ), uma “única personalidade legal para a União”, “primacy of the Constitution and Union law over the law of Member States”, extensão das competências em matérias de negócios estrangeiros e defesa, incluindo um Ministro dos Negócios Estrangeiros da EU , vice-presidente da Comissão , e método da Convenção para futuras mudanças constitucionais.

Tenho muitas objecções à necessidade deste salto qualitativo, e receio que com estas acelerações constitucionais se crie uma situação em que qualquer crise política no futuro, semelhante à do Iraque, conduza a uma crise institucional com muito mais sérias consequências na UE. Anda-se a brincar com o fogo e com a força do facto consumado, vai tudo atrás.

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18.6.03


BREVES

1. Para quem pensa que as boas maneiras e o altruísmo são apenas o resultado da educação individual, vale a pena ler um notável artigo de Robert Levine, “The Kindness of Strangers” no American Scientist de Maio-Junho 2003

2. Chris Patten é o comissário mais interessante, inteligente, vivo, cínico, irónico, witty e um daqueles com que menos concordo. Como se costuma dizer, em bom português, “sabe-a toda”, mas a verdade é que quando ele vai ao Parlamento é sempre uma festa para a cabeça, mesmo quando é um revolta para muita coisa que defendo. Comparado com Solana, com quem partilha as “relações externas”, é uma diferença abissal.
Atacado pelos seus colegas conservadores eurocépticos, respondeu num artigo no Spectator de 7 de Junho intitulado “I am a Tory to my toes” que mostra todas as suas qualidades e alguns dos seus defeitos. Percebe-se também que o seu objectivo é vir a ser Primeiro Ministro.
Vale a pena ler.


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A COISA ESTÁ A MUDAR

Continua uma tendência , que não posso deixar de saudar com palmas , para uma maior diversificação da blogosfera .Variam os interesses, as idades, as escritas , os locais, os olhares . Temos um diário senense , um Comprometido Espectador, um judeu alentejano muito especial , a somar ao nosso latinista, ao nosso editor, ao nosso frequentador de alfarrábios e velharias literárias, começam a aparecer arquitectos, temos a nossa jurista dedicada, dominatrix da regulação, um causídico , etc. etc.. E ainda vai haver mais.

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ALTERAÇÕES


A partir de agora rendo-me ao neologismo passando de blogs para blogues . Tem sentido se se quer introduzir o nome e a coisa no português .
A errática forma de colocar a pontuação, com ou sem espaço, também vai ser unificada . Por razões estéticas, mais que subjectivas, não gosto de colocar a vírgula ou o ponto logo a seguir à palavra. Perde espaço, respiração. Mas rendo-me aos correctores ortográficos por onde os meus fiéis amigos passam os meus textos.
Os erros de ortografia , mea culpa ,sem desculpa , uma vez assinalados são corrigidos. Obrigado aos assinalantes .

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17.6.03


DISCUTIR OS BLOGS

Só talvez para o fim de semana é que pegarei de novo no texto individual / "colectivo" que vai na versão 3.0 . O assunto continua a ser discutido um pouco por todo o lado , mesmo pelos que recusam a oportunidade ou o interesse da discussão, que é também um ponto de vista a ter em conta . Entretanto há contribuições muito interessantes que integrarei no texto , mas que ganham em ser divulgadas de imediato . Uma delas vem da equipa do psicossomática ( que está em baixa , mas espero que volte ) enviada em e-mail de que transcrevo partes :

"O que mais nos interessa nos blogs é a dimensão da personae em desdobramentos de personalidade de uma intensidade que encontra na Internet um meio altamente propício mas que nos blogs portugueses (pelo menos os que conseguimos ler) não vai muito além de relatos da vida real, os tais diários ou posts “umbiguistas” (no Brasil, por exemplo, o fenómeno blog encontra no domínio da fantasia casos absolutamente extraordinários!). "

"Ao longo deste tempo em que fizemos parte da blogosfera (...) dizíamos, demos conta da replicação de ideias e tiques que encontramos nos jornais e nos meios de comunicação em geral. Aquilo que, na fantasia de alguns, podia ser uma alternativa às vozes dominantes ou ao “princípio da realidade” revelou-se afinal o inverso ou o reverso dessa mesma fantasia, ou seja, cada blog exibia de uma forma regular a vontade expressa de chamar a realidade ou o desejo de uma identidade com “nome” (no sentido que Lacan lhe atribuía). "

"O que observámos na maioria dos comentários que fomos lendo nos blogs à imprensa escrita, nomeadamente, tem origem no desejo (legítimo, diga-se!) de protagonismo dos que o assinam, mesmo dos que assinam com nicks. Para nós este é que é o “princípio da realidade” da blogosfera, ou seja, o da passagem de um anonimato ou semi-anonimato virtual para a conquista de um nome no mundo real.
"


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OS MEUS LIVROS

No último Os Meus Livros vem uma série de depoimentos sobre os livros proibidos lidos antes do 25 de Abril . Os que dizem que os livros proibidos eram os do Eça (Carlos Reis , Helena Sacadura Cabral ) nunca leram verdadeiramente nenhum livro proibido e estão a dar-se ares de "antifascistas" . A história de colar o Canto IX dos Lusíadas com fita cola também me parece lenda urbana ...
Para quem viveu esses tempos , - e eu tive dois livros meus proibidos quanto mais ler outros sous le manteau - , percebe-se tão bem quem está retrospectivamente a inventar-se e quem de facto sabe do que fala . Não há volta a dar-lhe .

Só agora reparei que a coluna habitual de Marcelo Rebelo de Sousa na revista se chama "Li e gostei" . Na lista dos "lidos" deste mês estão sessenta e cinco livros , mais de dois por dia , incluindo o Dicionário Prático para o Estudo do Português e Gestão de Serviços . A Avaliação de Qualidade . Isso é que é "ler" ! A coluna devia era chamar-se "Faço listas de livros e gosto" . Ele e Os Meus Livros . Depois queixem-se da banalização da leitura .

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16.6.03


VALE A PENA NA BLOGOSFERA


O Intelligo é um blog que só tem poemas , em bom rigor não é um blog . Mas vai-se lá e lê-se um , e depois outro e outro e outro , desses “Classici Scriptores” e mergulha-se na conversa interior da nossa fala ocidental , da Bíblia para Camões , para Catulo e Horácio , do português para o latim , sempre num brilho das palavras sem limite .


Me transmitte sursum, caledoni !” Ou seja “Beam me up, Scotty! “. Todas as semanas que tenho de ir a Bruxelas , como eu gostaria de dizer isto ao “caledoni” ! O Latinista Ilustre é uma grande entrada nos blogs ! Divertido e culto , original e curioso . Um bom sinal da variedade dos blogs que estão a nascer por todo o lado - Sit Vis vobiscum !

(E continuo a procurar resolver o enigma maurrasiano … )


Em Replicar esta descrição do ensino primário no Portugal profundo do século XIX .

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AUTORIZAÇÃO DE CITAÇÕES

Sempre que alguém escreva para o Abrupto , contribuindo para as discussões do blog , pedia o favor de indicar se autoriza a citação do conteúdo dos e-mail . Por regra eu nunca publico nada sem essa autorização e continuarei a fazê-lo , mesmo depois desta nota ,sempre que não haja uma autorização explícita .

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LER DUAS VEZES 4

1. Nuno Mota Pinto do Mar Salgado lembra as suas duas leituras de Os Maias de Eça :

"Li Os Maias pela primeira vez quando estava no liceu, com cerca de 15 anos. Voltei a lê-lo quando tinha cerca de 30 (há dois ou três anos). Talvez fruto de, da primeira vez, ter feito uma leitura conduzida pela professora (excelente diga-se) e pela aplicação do programa liceal de Português, a verdade é que então a impressão que mais fortemente ficou inscrita em mim foi o carácter trágico do romance entre Carlos da Maia e Maria Eduarda. A impossibilidade desse amor e a infelicidade gerada por esse encontro improvável impressionaram o meu espírito adolescente.

Aquando da segunda leitura, toda a história de amor me pareceu apenas um pretexto para uma obra notável de caracterização da sociedade da época. Admirei a ironia corrosiva das descrições certeiras do conservador e monástico ambiente universitário coimbrão e de uma burguesia e aristocracia lisboetas incultas e ambiciosas que vivem para e à volta do Poder (dois ambientes que conheço razoavelmente nos dias de hoje). Fiquei preso pela exposição detalhada e brilhante do estilo de vida da época. Dei por mim a pensar que muito do que então foi escrito tinha actualidade (acho que não fui muito original neste pensamento).
Estas diferenças levaram-me às seguintes reflexões:

- A mesma obra tem impactos diferentes e é lida forma diversa consoante o grau de maturidade do leitor. Um espírito adolescente, pronto a entrar nos jogos, manhas e imprevistos das seduções e das relações amorosas é provavelmente presa fácil para uma história de amor simples e trágica.

- A leitura orientada, que é o grosso da leitura dos portugueses (muitos deles não lêem mais do que aquilo a que são obrigados no liceu), pode dar uma visão truncada das obras, não permitindo a apreensão de toda a sua dimensão. Isto é ainda mais verdade quando o ensino do Português se centra talvez em demasia na compreensão dos aspectos formais de uma obra. Gasta-se imenso tempo em desagregações e classificações das figuras de estilo usadas e na explicação da inclusão de uma obra em movimentos literários, em vez de explicações mais simples do impacto e da importância do que lá está escrito para a compreensão do que somos.

- O facto de se ler uma obra com mais maturidade não quer dizer que a sua compreensão seja maior. Quando reli os Maias já era mais vivido, mais viajado, tendo inclusivé já estudado no estrangeiro. Ora, esta condição pode ter-me feito embarcar com facilidade no estilo notória e declaradamente estrangeirado de Eça. A esta luz, o exercício de transposição de descrições dos Maias para os dias de hoje pode facilmente cair numa manifestação de snobismo intelectual que não me interessa e que tento contrariar. Isto é ainda mais válido para outras obras de Eça como a Ilustre Casa de Ramires ou o Conde de Abranhos. A experiência aumenta a clarividência, mas também consolida e aprofunda vícios de raciocínio e de atitude mental.
"


2. João Costa lembra as palavras de Peguy , citadas por Steiner, sobre o papel da leitura :

"Une lecture bien faite...n'est pas moins que le vrai, que le véritable et même et surtout que le réel achèvement du texte, que le réel achèvement de l'oeuvre; comme un couronnement, comme une grâce particulière et coronale...Elle est ainsi littéralement une coopération, une collaboration intime, intérieure...aussi, une haute, une suprême et singulière, une déconcertante responsabilité. C'est une destinée merveilleuse, et presqu'effrayante, que tant de grandes oeuvres, tant d'oeuvres de grands hommes et de si grands hommes puissent recevoir encore un accomplissement, un achèvement, un couronnement de nous...de notre lecture. Quelle effrayante responsabilité, pour nous."

( Charles Péguy, Dialogue de l'histoire et de l'âme paienne (1912-13) citado por George Steiner , "The Uncommon Reader " (1978) , publicado em No Passion Spent, Yale University Press, 1996 )

Obrigada aos meus amigos Latinista Ilustre e Jaquinzinhos ( bizarra combinação entre o latim e o peixe ) que me ensinaram a colocar a reprodução do quadro de Chardin, Le Philosophe Lisant (1734) , que inspira o ensaio de Steiner .





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SILLY SEASON

Já se notam os efeitos das férias: isto vai dividir-se entre as cigarras e as formiguinhas.

E lá vão as formiguinhas ganhar, como ganham sempre, ignoradas , gozadas , sem bronze , sem o sinistro toque dos Algarves , com aquela fome ancestral , de gerações , que as leva a trazer mais uma pedrinha , mais um raminho , a não se dispersarem , a terem disciplina , a pouparem .

Os outros levam os livros , mas depois há tanta areia , e está tanto calor , e deitei-me tão tarde …

E vai começar a silly season .


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15.6.03


DISCURSOS DOMINICAIS


1.A defesa feita por Santana Lopes e José Sócrates do “estado” do Euro 2004 é inadmissível. É uma defesa sem sentido e perigosa do laxismo do Estado , da megalomania das despesas com estádios , da falta de rigor na gestão dos dinheiros públicos . Tudo em nome de um país atrasado subordinado ao Rei Futebol, que não se respeita a si próprio, nem ao dinheiro dos seus contribuintes .

2.A intervenção de Santana Lopes sobre Fátima Felgueiras mostra como é possível não ter qualquer repugnância ética perante comportamentos absolutamente condenáveis. A gente olha para as imagens e as palavras e não sente nenhum incómodo do político, nem sequer um esforço de fingimento, tão habitual nestas coisas. Se se trivializam actos como da felgueirense , não vamos longe .

3.Quanto ao comportamento da RTP no caso de Fátima Felgueiras , Marcelo Rebelo de Sousa , pelo seu lado , disse o necessário , coincidindo com o que vários blogs escreveram de imediato , incluindo este . Na questão da Constituição Europeia foi muito superficial, e pronunciou-se apenas sobre a agenda institucional . Ora a Constituição Europeia está longe de ser apenas uma “simplificação dos tratados” . Se fosse assim precisava de se chamar Constituição ?


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DE NOVO SOBRE O FÓRUM SOCIAL

Sobre os comentários de Rui Noronha e Daniel Oliveira no Blog de Esquerda ao Fórum Social Português

1. Noronha diz que “a forma como se reduz o fórum ao mesmo de sempre, feito e dito pelos mesmos de sempre, apenas ilustra a incapacidade de compreender registos, discursos e práticas, naquilo que eles têm de fundamentalmente novo face ao passado recente”. Daniel Oliveira ainda vai mais longe e acha que há um Portugal antes e outro depois do Fórum :

Gente que, na sua terra ou no seu sector, vê a democracia como um acto de participação permanente, de vigilância cívica, de exigência cidadã. Mas gente que não se limita ao seu quintal e quer participar na construção do seu futuro. Este debate transversal entre todos os que, associando-se em torno de causas concretas, são capazes de pensar em conjunto, trocar experiência, divergir e convergir, é uma absoluta novidade em Portugal.”

2. Novo? Não há um único tema, uma única questão no Fórum que seja nova, quanto mais “fundamentalmente nova” ou “absoluta novidade” . Desde Maio de 68 e desde os movimentos americanos de “single issue” na mesma época , que todos , sem excepção , todos , os temas tratados no Fórum são conhecidos. Intitula-los uma “agenda política pós-moderna” , como faz Oliveira quando diz que

Movimentos feministas, de Gays e Lésbicas e de minorias étnicas há muito que vinham construindo o que se pode designar como uma agenda política pós-moderna. Pós-moderna porque se afirma na recusa das grandes narrativas políticas da modernidade, nomeadamente o Marxismo, na recusa de toda a teleologia e de qualquer leitura totalizante da sociedade e da história

também não vai longe . Este conceito de “pós-modernidade” tem pelo menos cento e cinquenta anos de história . Por exemplo , os anarquistas tinham a si associados movimentos a favor da contracepção, anti-tabagistas , contra as touradas , naturistas e vegetarianos , a favor de uma língua universal , etc. , etc , e também recusavam aquilo a que ele chama eufemisticamente “as grandes narrativas políticas da modernidade.” Arrombar portas abertas e proclama-lo é muito arrogante .

3. Quanto à forma , o Fórum não é distinto de realizações tão “burguesas” como o “Portugal que futuro ?” do Dr. Soares (acho que se chamava assim ) ou de algumas acções do Presidente Eanes e do PRD . Este tipo de realizações de “movimentos” fora dos “partidos” são tristemente semelhantes na forma e nos resultados . Esta teve talvez mais folclore.,

4. É a referência à globalização que faz a diferença ? Duvido , a globalização na teorização dos mentores do Forum é um outro nome para o capitalismo internacional em situação “unipolar” , ou seja , sem o “campo socialista” . Mesmo os que distinguem a “globalização” boa da má, retomam palavras e ideias conhecidas de Marx ou Rosa Luxemburgo .

5. Depois procura-se à lupa a “novidade” e nada se encontra fora de impressões . O exemplo de Noronha é bem característico da vacuidade do Fórum , fora das “impressões” existenciais de quem lá esteve :

Sentado numa oficina acerca da arte e as suas possibilidades de intervenção política – com a desorganização própria de algo incontrolado que dá os primeiros passos e procura caminhos – ou assistindo a uma mesa redonda acerca de documentários, com o Eduardo Cintra Torres, o A. M. Seabra, a Diana Andringa, o Rui Leitão (genial como sempre) e o José Filipe Costa, apenas consegui pensar no potencial existente em pessoas que ainda tacteiam em busca de uma forma de fazer diferente. Encontrei gente que eu conheço de contextos completamente distintos e distantes e que nunca esperaria ver ali. E é precisamente essa característica de espaço de contacto entre contextos habitualmente incontactáveis que faz a diferença.”

Mas isto é um vulgar colóquio ! Onde é que está a diferença ? Foi bom o colóquio ? Gostou ? São pessoas “que ainda tacteiam em busca de uma forma de fazer diferente” ?” Força !
A única diferença entre isto e um colóquio é o seu enquadramento político – ou seja , para alguns há aqui uma forma de poder , uma procura de poder . Os intelectuais de esquerda, quando perdem a sua função oracular junto do poder sentem-se mal . O problema é que a democracia não lhes dá qualquer privilégio “interpretativo” pela sua condição de intelectuais .

6. Sobre o carácter dos auto-designados “movimentos sociais” do Fórum, Daniel Oliveira tem toda a razão nas comparações que faz

Pacheco Pereira quer saber onde estão os No Name Boys e os combatentes da guerra colonial. Acrescento mesmo: e o movimento Pró-Vida? E as mães de Bragança? E as Vicentinas? Pacheco Pereira confunde o Fórum Social com a Câmara Corporativa. O Fórum não representa o todo social. Representa o mundo social que luta por uma globalização alternativa. É um espaço de confluência política.

Todos os movimentos referidos , o “Pró-Vida” , as “mães de Bragança” são do mesmo tipo dos representados no Fórum . Daniel Oliveira acaba por admitir que não é o carácter de “movimento social” que os distingue , mas o seu sentido político . Foi exactamente o que eu disse sobre o Fórum : é um movimento politizado , associado a partidos ou proto-partidos , com uma lógica de poder político e não “social” .
Só posso saudar a exactidão da referência à Câmara Corporativa do salazarismo , porque o corporativismo de esquerda , com velhas tradições em Portugal , é o único programa esboçado no Fórum que é alternativo à visão marxista tradicional .

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© José Pacheco Pereira
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