ABRUPTO

27.11.03


O ESCRITOR COMO FUNCIONÁRIO PÚBLICO

O ideal de muitos escritores em Portugal é serem funcionários públicos. Muitos já o são, usando esquemas pouco conhecidos e pouco escrutinados em vários ministérios (como o da educação) e em certas autarquias, pelos quais recebem dinheiro público por serem “escritores”, praticamente sem contrapartidas. O mais perverso destes mecanismos é o das “bolsas para escritores” em versão junior e sénior, novo, “revelação”, menos novo e “consagrado”. De há muito que me pronuncio contra este tipo de subsídios, que, como todos os subsídios (e este é relativamente novo), gera a habitual dependência.

Não vale a pena repetir o que já muitas vezes disse e escrevi, apenas registar a defesa inflamada de Luísa Costa Gomes , hoje no Público, destes subsídios e desta dependência:

"O Estado deve apoiar, encorajar, acarinhar, alimentar, tendo em conta a situação miserável da criação em Portugal e a agressividade das indústrias da cultura. Há muito pouca criação. O Estado deve ter uma iniciativa de apoio."

Todos os argumentos são típicos do raciocínio burocrático e estão descritos nas várias leis que regulam a burocracia como a de Parkinson. Primeiro, o argumento de autoridade, da indiscutibilidade do valor da cultura – ai de quem for contra os escritores subsidiados, só pode ser por "ressentimento anti-intelectualista". Depois, a ameaça das consequências, na forma conhecida: quantas páginas únicas da nossa literatura são perdidas por que o estado não as subsidiou?

"Se a Maria Velho da Costa, a nossa maior escritora viva, fosse pedir apoio ao IPLB era um concerto de vozes nos jornais! Isto ofende-me! Há um fervor contra os escritores que é estranho para mim. E isto não é espírito corporativo. Aquilo que a Maria Velho da Costa escreve, mais ninguém escreve. Se ela não escrever, aquilo perde-se."

Depois, tudo é sempre pouco: defende que se "deve aumentar-se o apoio à criação, o número e as categorias" das bolsas. "Doze é pouco. Quando os apoios são exíguos, as razões administrativas começam a impor-se."

Depois, a descrição da “carreira” dos escritores sem hierarquia nem senioridade “adquirida”:

"Os escritores em Portugal parece que estão sempre a começar carreira, nada está adquirido.

E, por fim, esta frase fabulosa para um(a) criador(a) : sem dinheiro “acabou-se”, não se escreve

Se o Estado não dá, acabou-se. Não há alternativas, ao contrário do que acontece em outros países."


Olhe que sim, olhe que sim. Há outras alternativas: escrever, mesmo com dificuldades, como milhares de escritores fizeram, ao mesmo tempo que trabalhavam, viver pior para ter tempo para escrever e confiar no que se faz, arranjar um mecenas (também existem), ganhar no mercado as condições de escrita que se desejam (não, não é preciso fazer literatura como a da Margarida Rebelo Pinto, para se ganhar algum dinheiro a escrever e não é desonra nenhuma), se o que se escreve não tem público, aceitar normalmente que é assim e continuar a escrever, nem que seja num blogue que é grátis. Em todos os casos, ser mais fiel à pulsão de escrever do que à “carreira” de escritor.

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© José Pacheco Pereira
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