ABRUPTO

19.11.03


ESTRASBURGO, UM DIA

Cinzento e frio, o fumo permanece baixo. O costume.

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Entro às 8,15, saio normalmente entre as 21 e as 22. O Parlamento é uma grande prisão, diz-se que foi feito por um arquitecto especializado em prisões. O edifício é compacto e cinzento no exterior, lajes de ardósia, aço, vidro, todos os tons de cinza. No interior, umas lianas artificiais prolongam-se do tecto para um chão negro de ardósia ou xisto, para dar uma sensação de verde. De há muito que não são verdes, com um pó pertinaz que as suja. Como são praticamente impossíveis de limpar, continuam sujas.

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O edifício ganhou um prémio de arquitectura, mas está cheio de coisas que devem ter sido caríssimas e não servem para nada, como umas estruturas parecidas com uns cornetos invertidos ( ou uns embrulhos de fish and chips) de betão, napa e alcatifa, supostamente com uns telefones no meio para os deputados irem lá dentro falar. Basta entrar um, que ficam ocupados, porque não há privacidade nenhuma. Há mais de seiscentos utentes, mais milhares de assistentes, lobistas, visitas, que também os usam. Há cinco ou seis cornetos, servem dez pessoas o máximo, no seu esplendor de mobiliário inútil.

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Presido à sessão da manhã. Está a Comissão em peso porque se discute o seu Programa. As suspeitas de fraude na Comissão com o Eurostat são o prato forte do debate. Muitos deputados, ingleses e holandeses em particular, falam uma linguagem pouco comum ao discurso parlamentar português: a da defesa do dinheiro dos contribuintes. Prodi provoca um incidente parlamentar com as suas referências à política interna italiana, onde parece que pretende candidatar-se a deputado nas próximas eleições. Hoje a política mais quente no Parlamento é a italiana.

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Falo, por videoconferência, numa versão especial do Flashback chamada Flashforward, integrada no Congresso das Comunicações, em Lisboa. Foi o primeiro Flashback depois da extinção na TSF, antes de passar para a SIC Notícias. Como bom liberal, critico a contradição que me parece existir nos chamados "objectivos de Lisboa", que incluíam um fórmula de aparência muito parecida com a que usou Krutchov há uns anos: ultrapassar os EUA em 2010, Guterres dixit. A contradição é tentar criar uma eEuropa com o objectivo de combater o desemprego. Defendo que uma eEuropa deve ter como objectivo aumentar a produtividade e esta gerar riqueza e emprego. É uma coisa muito diferente do que arrastar o célebre "modelo social europeu" às costas. Os primeiros resultados do famoso benchmarking previsto é que os indicadores do atraso ainda mais se acentuaram. Apesar do "programa de Lisboa", os EUA alargaram o fosso tecnológico.

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Durante a tarde, a habitual sucessão de reuniões. No Parlamento Europeu há reuniões para preparar reuniões para preparar reuniões. Não é brincadeira, é a sério, e às vezes ainda é mais complicado.

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A meio da tarde, em frente à minha janela, que é bastante alta, passa um bando de corvos. Passam uma vez, mais baixo, picam, sobrevoam umas árvores e sobem outra vez. Nunca tinha visto um bando de corvos. Lembrei-me dos Pássaros de Hitchcock. A seguir, um ou dois retardatários parecem perdidos. Ainda mais um. Augúrios.

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Afinal consegui um intervalo para descer, como os corvos, a Estrasburgo cidade. É raríssimo poder ver Estrasburgo às horas de vida normal. Já é princípio da noite, porque, entre as 17 e as 18 horas, já é noite.

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É nestas alturas, em vésperas de Natal, que Estrasburgo parece uma pequena cidade alemã, uma vila renana rica e recatada no particular conforto das terras do Norte. Nas ruas, as lojas brilham, começa a sentir-se o cheiro a vinho quente, a massapão e pão doce com canela. Aparecem as primeiras decorações de Natal e as brasseries ostentam cartazes com a bière de Nöel. Nas ruas, longas bancadas de livros. Em breve, conviverão o dia todo com as primícias alsacianas, as trufas, o foie gras, os queijos, os enchidos, os mil e um produtos de qualidade destes campos férteis da PAC. Terra rica, sólida, burguesa.

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Olho para o outro lado imaginário. A meia dúzia de quilómetros, está uma terra dostoiewskiana, Baden-Baden. Hotel, casino e termas. Sombras czaristas, jogadores perdidos. agentes secretos, velhas damas alemãs, concursos de danças de salão. O antídoto.

(Continua)



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© José Pacheco Pereira
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