ABRUPTO

27.9.03


SOBRE A “MARCHA BRANCA”: O POVO CONTRA MONTESQUIEU

Em princípios de 1998, assisti a uma “marcha branca” na Bélgica, no apogeu do processo Dutroux e escrevi um artigo no Diário de Notícias, intitulado “O povo contra Montesquieu", que aqui reproduzo parcialmente por me parecer oportuno.

“Era uma manifestação popular, o que é pouco comum. Desde que a fórmula do cortejo de protesto pacífico se estabilizou como um hábito democrático - e isso aconteceu só no nosso século com as primeiras manifestações ordeiras dos social-democratas alemães em Berlim, que não degeneraram em batalhas campais com a polícia - que as manifestações são um instrumento de acção política, dependentes de lógicas partidárias ou inerentes ao processo político. É verdade que também havia organizações que circulavam à volta do cortejo - os restos do P. C. Belga, um grupo trotsquista, uns ecologistas - mas eram marginais. Tinham pouco a ver com o que se estava a passar, eram apenas parasitárias.

Não é sequer o número de pessoas que conta, mas a forma, o carácter, o conteúdo. Aquela longa fila de homens, mulheres e crianças, muitas famílias inteiras, dessas novas famílias europeias muito pequenas, não tinha nenhum padrão especial que a desviasse de uma representação equilibrada da sociedade belga. Havia belgas, francófonos e flamengos, havia emigrantes, velhos e jovens, crianças e adolescentes. Só havia um traço de identidade - não parecia haver pessoas abastadas. Eram trabalhadores, funcionários, empregadas, donas de casa, vestidos casualmente de blusões e camisolas, poucos fatos e gravatas. Naquela enorme multidão estava uma Bélgica um pouco mais pobre do que a fauna eurocrata e dos negócios que se encontra habitualmente no centro de Bruxelas, misturada com os turistas. Havia muita gente que viera de comboio e autocarro dos subúrbios da cidade, e os pontos de reunião da manifestação estavam associados aos transportes públicos. Aquelas pessoas andam de metro, de autocarro, de comboio.

Depois, quase que não havia cartazes e os poucos que havia tinham sido feitos por aqueles que os traziam. Raramente tinham o tamanho de um vulgar cartaz de anúncio de um concerto de rock e estavam perdidos no meio de manifestantes de mãos nuas, sem autocolantes, sem símbolos, sem nada. Não havia palavras de ordem, ninguém gritava nada - o silêncio "contra o silêncio".
Os organizadores desta marcha são os comités ad hoc que se criaram à volta das famílias das crianças assassinadas. Quase que não tiveram meios de divulgar a manifestação e consideravam-na um sucesso se aparecessem 10.000 pessoas. Apareceu o triplo. Há um ano, o número de manifestantes era muito maior mas isso podia compreender-se pela emoção da tragédia dos assassinatos. Hoje há menos pessoas, mas são as mesmas e ainda são muitas, e não há razão nenhuma para não se perceber que elas comunicam invisivelmente com as muitas centenas de milhares que não saíram à rua. Longe da emoção causada pelas revelações criminosas, a mesmo revolta continua. Popular. Silenciosa. Forte.

O que querem os manifestantes? Não o dizem com clareza, mas percebe-se: querem que alguém mande - porque é suposto ter a obrigação de mandar -, mande nos juízes e nas polícias para acabar com os crimes. Que alguém faça não só justiça, mas também garanta reparação, reparação para as famílias, reparação para todos os que ali estão. Que todos, a começar pelas famílias, sejam "parte" nesse processo de justiça, tenham "voz", a única que se considera legítima e pura, porque vem da perda e do sofrimento. Que haja justiça vinda de quem sofre e não de quem julga, porque se suspeita que quem julga está mais próximo do criminoso do que da vítima.

O pretexto são os crimes da rede pedófila de Dutroux , mas o alvo é a percepção de que eles só foram possíveis por uma rede de cumplicidades que envolve políticos, polícias, e ... juízes. É contra uma conspiração pressentida que se revoltam os manifestantes, uma conspiração dos poderosos contra o povo comum, que oculta crimes tão terríveis como a violação e o assassinato de crianças, através de uma "lei do silêncio", que funciona como uma lei do poder, a favor do poder.

Sendo assim a manifestação é tanto popular como subversiva, no verdadeiro sentido da palavra. O que está em causa é a ordem, a ordem democrática assente na divisão dos poderes. Os manifestantes querem que alguém - e esse alguém só pode ser um governante, um político ou o "povo" nas ruas - interfira no processo judicial, dê ordens a um juiz. Ora isto viola claramente a separação clássica entre os poderes, do mesmo modo como há alguns anos os apelos aos juizes italianos para "governarem" a Itália, contra a mafia e a corrupção.

(…) Os manifestantes belgas traduzem um mal-estar profundo que também é nosso. Na Bélgica é contra os juízes, que são percebidos como "políticos" como outros quaisquer. Mas a verdadeira revolta é contra o poder e os poderosos, feita por um povo comum que não acredita nos partidos ou nos sindicatos para exprimir e canalizar essa revolta. Não é um problema novo, mas conhece hoje novas formas.”

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© José Pacheco Pereira
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