ABRUPTO

26.9.03


MISSÃO IMPOSSÍVEL *

(Carta aberta a António Lobo Xavier sobre a “coerência”)

Meu caro António

1. Se há artigo que eu sabia ia ser escrito, como uma espécie de pre-emptive strike, era este.....Não me enganei, nem quanto ao autor, nem quanto ao conteúdo, nem quanto ao papel político que o artigo pretende ter. Só uma nota sobre o autor: António Lobo Xavier (ALX) é o único dirigente do PP que manteve a sua posição coerente quanto à Europa, nestes últimos dez anos. ALX presta um serviço ao PP chegando-se à frente, querendo que o debate seja com ele, porque é o único que o pode travar.

2. Eu aceito o repto, mas não é com o ALX que discuto, é com o PP, com o PP de Paulo Portas, que quererá, sob o manto diáfano da "eurocalmice", (uma completa e absoluta inexistência conceptual, destinada a encobrir o mais incomodado dos silêncios), escapar ao escrutínio da viragem a 180º, e ao seu significado político. Também sei que este artigo tem muito a ver com as nossas discussões e com o que o António sabia que eu iria dizer ou escrever. "Eu sei que tu sabes que eu sei que tu sabes" é daquelas coisas que, na política portuguesa, são inescapáveis, tanto mais que o país é pequeno e nós, como discutimos há muitos anos no Flashback e somos amigos, "sabemos".

3. Vamos à "coerência". Tudo estaria bem se fosse assim, mas não é. Bem pelo contrário. De facto, a aliança eleitoral que se anuncia entre PP e PSD nas europeias só tem uma lógica política : a manutenção da coligação governamental. Nada tem a ver com a Europa , nem com as posições de cada partido. Mais valia que o PP dissesse claramente que é assim e admitisse que, para permanecer na coligação e no governo e para não contar os votos, abandonou as posições "euro-excitadas". O PP não evoluiu - não existem quaisquer traços sérios dessa evolução - mudou. E mudou de forma escondida e envergonhada, não querendo admitir que errou antes ou erra agora.

4. O problema é que as próximas eleições europeias vão travar-se num terreno de opções políticas decisivas, sem ambiguidades e que exigem posições claras sobre matérias tão controversas como a Constituição europeia. Seria inconcebível que o PSD e, em particular, o PP, pudessem travar uma campanha eleitoral sem, por exemplo, dizerem se são a favor ou contra o projecto de Constituição, e isso significa pronunciar-se sobre mil e uma matérias mais que espinhosas... para o PP. Para além disso, as próximas eleições dar-se-ão num contexto, ou de simultaneidade, ou de proximidade, com um eventual referendo sobre a Constituição e poderão acompanhar um processo de revisão constitucional por ela motivado.

5. Para o PSD, também existem dificuldades, porque no interior do partido há quem pense de modo muito diferente sobre estas matérias e não só de agora. Mas, seja qual for a definição a haver no PSD, ela não será traumática, até porque o partido sempre foi europeísta e acompanhou o processo de integração europeia sobre o qual há um certo consenso. Mas ALX não se iluda quanto às posições do PSD, reflexo das opções do governo, porque estas estão cada vez mais alinhadas com as do Partido Popular Europeu (PPE) . O PP, para acompanhar o PSD, terá que mudar do preto para o branco. E não terá que deitar fora velhas posições, como ALX sugere, do "princípio dos anos noventa", mas de 1999 e 2000. Veja-se a última campanha eleitoral para as europeias, completamente "euro-excitada", para se perceber o que mudou.

6. Nalgumas entrevistas recentes, dirigentes do PP têm apresentado a minha posição como sendo característica de uma evolução política semelhante à que estariam a ter eles próprios. O PSD, representado por mim, teria evoluído para um “euro-realismo” e para longe do federalismo do passado, e, movendo-se em sentido contrário, encontrar-se-iam com o PSD a meio desse caminho. Isto é obviamente uma ficção política, embora eu veja, com ironia, o meu papel de “unificador”. As minhas posições (ainda esta semana votei contra a moção do PE sobre a Constituição europeia) não são significativas da evolução que se está a dar no PSD, tanto quanto se pode perceber no plano governativo, embora sejam, no meu entender, fiéis ao programa de candidatura de 1999 com que fui eleito. Em 1999, Paulo Portas achava esse programa federalista. Se esse era federalista, então agora o PP vai-se aliar a um PSD ultra-federalista.

7. Na verdade, nunca as posições oficiais do PSD estiveram tão próximas do federalismo do que estão hoje. Durão Barroso, honra lhe seja feita, nunca escondeu um pendor federalista em matérias europeias e, com excepção da parte sobre o poder institucional, várias vezes se pronunciou favoravelmente ao processo constitucional da Convenção, alinhando aliás as suas posições com as do PPE. Este foi longe no projecto europeu (Constituição, reforço dos poderes do Parlamento Europeu, modelo federal, unificação das políticas europeias em áreas tradicionais de reserva da soberania dos estados, etc.) e considera-se, a justo título, como um dos inspiradores da Constituição europeia e como parte do núcleo mais duro de um processo de integração política, a caminho de uma UE entendida como uma país suis generis. Se, como diz ALX, o PP se aproxima hoje das suas “posições fundacionais”, então os verdadeiros heróis são Freitas do Amaral e Lucas Pires, que sempre representaram esse legado do federalismo do PPE. Ambos tratados como quase traidores a Portugal, e Lucas Pires insultado soezmente na televisão em directo por Paulo Portas.

8. Meu caro António, as coisas são como são e cada um faz o seu caminho. O meu é cada vez mais difícil, e, provavelmente, custará o meu lugar no PE. Acho a coisa mais normal do mundo deixar de exercer funções políticas quando não se concorda com a política. Mas preocupa-me o caminho que se está a seguir. A "Europa" que vamos discutir em 2004 não é soft, é hard , as opções demasiado graves para haver confusões. Se há altura em que não se pode ficar “calmo” com a Europa é agora. Uma das muitas objecções que se podem ter a uma aliança PSD-PP, é que ela poderá gerar, num momento decisivo, um espaço de ambiguidade mau para os interesses de Portugal e para o projecto europeu.

Um abraço do

José Pacheco Pereira

* Este texto será publicado amanhã no Público. Depois dessa publicação, substituirei o texto por uma ligação, dado que ele é muito extenso para o Abrupto.


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