ABRUPTO

6.9.03


COM QUEM FALAMOS QUANDO FALAMOS DO BE

Na discussão, iniciada com a nota “Não vi e continuo a não ver”, de 2 de Setembro, ficou adiada a última parte que aqui reproduzo:

“Fica de fora desta controvérsia a questão de fundo sobre se é comparável a extrema esquerda e a extrema direita, suscitada em perguntas como esta do Terras do Nunca - "se se podem fazer equivaler, por exemplo, as posições neo - nazis às de partidos parlamentares como o BE"?.- porque a resposta implica todo um outro debate , a que voltarei noutra altura. Devo desde já dizer que, formulada a questão doutra maneira, a minha resposta é sim.”

O adiamento da resposta suscitou algumas impaciências, – na blogosfera há muita impaciência –, mas eu entendo este meio como sendo incremental, dada a sua natureza fragmentária, e acrescento hoje mais alguns elementos sobre a razão porque dei aquele sim. A resposta à pergunta do Terras do Nunca implica, até pelo seu carácter polémico, uma série de argumentos todos à volta de três questões: ideologia ou “interpretação do mundo”, posição face à democracia e métodos revolucionários (apologia da violência como meio de transformação política). É pela análise destes elementos, todos eles firmemente ancorados na história política do século XX, que se pode chegar à análise e comparação dos extremismos de direita e de esquerda.

O BLOCO DE ESQUERDA

O exemplo que o Terras do Nunca referiu foi o Bloco de Esquerda (BE), a mais importante coligação de grupos radicais da extrema-esquerda em Portugal Ora, uma das características dos grupos extremistas é exactamente estarem sempre a dizer-nos que não o são. A caracterização do BE é um condição sine qua non para prosseguir a discussão – o que é que pensam os seus dirigentes, quais os seus programas

Mas para sanear a questão convêm ver do que estamos a falar, porque o BE é uma frente eleitoral e parlamentar que reúne vários partidos, que tem programas e estatutos definidos e, qualquer análise do BE assente apenas na sua imagem parlamentar e mediática, seria errada. O BE faz um enorme esforço para criar um ecrã interpretativo e para esconder todo um aspecto da actividade dos seus amáveis e simpáticos líderes, que é sistematicamente deixada fora da atenção pública porque não dá jeito. Como muitas vezes acontece nas políticas, o combate é pelas palavras que designam e o BE quer controlar o modo como é designado. Ás vezes, nesse esforço toma os outros por parvos

O BE é uma aliança política e eleitoral de vários partidos e grupos, com dominação da UDP e PSR. Começa porque não lhes convem muito nomear esta realidade. A tradição desses partidos é a do marxismo-leninismo político e organizacional, embora divirjam em duas correntes distintas uma maoista e outra trotsquista. Deixarei a análise da UDP para outra ocasião, fico-me agora com o PSR. O PSR é um partido fundamental do BE não só pela figura mediática do seu dirigente Louça, como pela influência dos seus temas alternativos na conquista de influência junto dos intelectuais e dos jovens. A UDP tem uma composição mais operária e popular, mas com o seu sisudo dogmatismo dificilmente seria a face do BE. A UDP é mais importante do que se pensa no BE pela sua implantação social nas antigas zonas de hegemonia comunista, mas é o PSR que dá ao BE o tom radical chic .

PSR

O que é que é o PSR hoje? Na resposta rápida , porque não é difícil de dar, utilizo apenas documentos actuais, para que ninguém pense que isto é história passada. O PSR é a secção portuguesa da IV Internacional, uma organização comunista ao modelo da III Internacional criado por Lenine. As suas ideias, o seu pensamento organizacional, derivam da tradição marxista-leninista e do pensamento de Trotsky, uma das variantes mais radicais da história do comunismo no século XIX. Enquanto cá o PSR usa como símbolo uma inócua estrelinha com design moderno, na Internacional o seu símbolo é uma foice e um martelo com um quatro por cima e o retrato de Trotsky . É este o símbolo que o PSR usa nas realizações internacionais, como se pode ver aqui

Quais são as linhas gerais dos seus documentos programáticos mais importantes, o Manifesto Político e os Estatutos?

1) O estalinismo é entendido apenas como uma “usurpação” do conteúdo benigno da revolução russa e do leninismo:

O estalinismo é o nome dado à usurpação do poder revolucionário por uma clique burocrática no final dos anos 20 e à contra-revolução burocrática, na URSS dos anos 30, que se prolongou na criação de uma correia de obediência internacional que o novo regime instaurou.” (Manifesto)

2) O Manifesto tem uma versão açucarada da “revolução socialista” como “ruptura política” , sendo omisso quanto à questão da violência

O eixo deste partido é um programa alternativo para a sociedade: a revolução socialista como ruptura política - protagonizada pela participação activa da maioria da população - que instaure uma democracia assente em mecanismos de participação e representatividades directa e indirecta, consagrando o princípio republicano contra a prepotência e a burocracia e constituindo o poder dos trabalhadores. A auto-organização e auto-gestão dos produtores e a sua articulação com a organização democrática dos consumidores é a condição para a gestão económica e política assente na cidadania. Um novo contrato social entre os sexos, assente na partilha de todas as responsabilidades, é o pressuposto para o exercício dessa cidadania.” (Manifesto)

mas os Estatutos são muito claros (num partido e numa internacional leninista são os Estatutos o documento fundamental para a adesão, por isso os Estatutos do PSR tem que ser conformes com a IV Internacional )

O PSR é a secção portuguesa da IV Internacional. O seu objectivo é a revolução socialista que destrua o sistema capitalista e a exploração do Homem pelo Homem, criando as bases para o desenvolvimento de uma sociedade socialista, iniciando a destruição do Estado pela instauração da mais ampla democracia social e pela associação livre dos produtores. A adesão a IV Internacional baseia-se no acordo com os seus princípios programáticos: os documentos fundacionais dos Congressos da Internacional Comunista, da oposição anti-estalinista e da fundação e dos Congressos Mundiais da IV Internacional, nomeadamente a resolução "Democracia Socialista e Ditadura do Proletariado". (Estatutos)

3) Identidade política baseado no trotsquismo e na IV Internacional por ele criada

Foi o compromisso internacionalista que levou Trotsky, dirigente da revolução russa perseguido por Estaline, a fundar em 1938 a Quarta Internacional. A Quarta Internacional, de que o PSR é a secção portuguesa, é hoje o lugar de encontro de experiências e análises dos momentos de luta, mantendo vivas as lições essenciais da história do movimento dos trabalhadores. “ (Manifesto)

Qualquer análise histórica e política do que escreveu e fez Trotsky encontra os elementos comuns com a tradição marxista-leninista ,incluindo os que estiveram na génese do estalinismo, a defesa do terror revolucionário como instrumento político, a afirmação da violência como instrumento da revolução, a defesa da ditadura do proletariado, a repressão das liberdades “burguesas”, etc. , etc. Para além disso, a descrição da IV Internacional como "um lugar de encontro" é uma pura mistificação.

4) Afirmação do centralismo democrático como mecanismo central do funcionamento do partido. Embora Trotsky se afastasse do modelo partidário dos partidos comunistas clássicos, aceitando por exemplo a existência de fracções, nem por isso no essencial o modelo das organizações da IV Internacional deixou de ter o centralismo democrático como base organizativa. Aqui também o Manifesto é soft e os Estatutos são hard

O PSR é portador de uma tradição revolucionária de oposição aos partidos-Estado, burocratizados e repressivos, do estalinismo. Essa tradição impõe o rigor constitutivo do seu funcionamento democrático - o direito de livre-expressão de opinião, a estruturação responsável e a decisão colectiva para a acção unitária, que são princípios leninistas actuais e aplicáveis. “(Manifesto)

19.O funcionamento interno do PSR rege-se pelos princípios do centralismo democrático: liberdade absoluta na discussão, unidade absoluta na acção em tudo o que diz respeito a intervenção partidária fundamental. Estes princípios expressam-se pela existência de uma direcção colectiva eleita, pela participação dos militantes na elaboração da linha política do Partido, pela tomada de decisões através do debate democrático e votação maioritária e pelo controle dos organismos de direcção pela base.
20.Os organismos do Partido aplicam as decisões tomadas em organismos superiores
.” (Estatutos)

É com este grupo e com estas posições que se tem que ter em conta quando se fala do BE.

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© José Pacheco Pereira
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