ABRUPTO

1.6.03


UMA HISTÓRIA RUSSA

Esta é uma história que ocorreu comigo em Moscovo, nos últimos anos da URSS e nos primeiros da Rússia, uma história exemplar das atitudes das pessoas comuns, que usei a semana passada numa sessão mais ou menos oficial, exactamente para ilustrar esse ponto de “bom senso” económico. Com pequenas alterações aqui fica.

Vivia-se então um período de transição caótico. Uma parte da nomenklatura soviética estava a apropriar-se dos bens que tinham qualquer valor e que controlavam enquanto burocratas. Ou seja a máfia russa estava a formar-se. Num desses anos fui a um restaurante na periferia de Moscovo que tinha acabado de abrir, e que pertencia certamente a esse novo grupo social emergente, entre a criminalidade e o negócio. Funcionando numa antiga residência académica, (no sentido russo de pertencer à Academia) de propriedade vaguíssima, o espaço tinha todos os sinais do novo-riquismo: veludos, baixelas de qualidade, um menu realista (o que era raro porque na URSS nunca havia qualquer relação entre o menu e o que se podia comer) e um serviço garantido por antigos estudantes cubanos de engenharia nuclear, que tinham ficado desamparados em Moscovo quando o projecto soviético de uma central nuclear em Cuba foi interrompido por Gorbachov. Era um sítio curioso e uma população curiosa . Quando me sentei , e durante quase todo o jantar , não estava ninguém a não ser uma mesa longínqua em que um homem taciturno comia ao mesmo tempo que tomava notas num bloco . À sua frente uma rapariga muito jovem e bonita comia também em perfeito silêncio . Apesar de ambos estarem em frente um do outro , não falavam .

Periodicamente vinha o cozinheiro da cozinha e trocava duas ou três palavras com o homem taciturno, a seguir um criado, depois outro e, frequentes vezes, uma senhora que fazia o papel de chefe de mesa. Os contactos eram brevíssimos, regulares, reverenciais e discretos. Presumi e bem que quem mandava era o homem. Imaginem pois qual a minha surpresa quando a senhora que chefiava o serviço das mesas se identificou, sem saber que falava com um conterrâneo, como portuguesa. Ali, no meio dos súburbios moscovitas, já na transição com a floresta russa, estava uma vianense, saída da sua Viana de Castelo para ir para Paris e de Paris saindo para viver com o georgiano que era essa a novel nacionalidade do taciturno. Este “possuía” o restaurante e um ou dois casinos flutuantes em Odessa, um património sobre o qual, o mínimo que se possa dizer, é que era bizarro.

Mas a história verdadeiramente começa aqui. Contente como eu de encontrar um patrício no mais imprevisto dos lugares, sentou-se na mesa e começou a contar das suas dificuldades em gerir o restaurante e deu-me a melhor lição que jamais aprendi não só sobre a economia soviética, mas sobre como as atitudes comuns, que nos são muitas vezes invisíveis, que nós não nos apercebemos, porque não temos distanciação, são as traves mestras do progresso ou do atraso económico. Ao mesmo tempo, mostrava-me como era díficil mudar aquilo que chamamos habitualmente as “mentalidades”.

Ela explicou-me primeiro a razão porque escolhera ter empregados cubanos e não russos. Os russos, dizia ela, habituados a trabalhar num contexto altamente burocratizado, sem qualquer incentivo para se esforçarem mais ou melhor, faziam o mínimo possível. Os cubanos estavam numa situação difícil, sem dinheiro, e acima de tudo queriam voltar para Cuba. Presumo que trabalhavam à margem de qualquer protecção social, mas isso era visto como trivial. Nessa altura, as leis em vigor eram apenas um meio suplementar e pretextual de rapina por parte dos burocratas que as aplicavam conforme o seu interesse próprio, os subornos que recebiam ou não. Como à volta da portuguesa não havia estado, era a máfia que fazia esse papel.

Depois, na conversa, somava pormenor sobre pormenor sobre o seu desespero em conseguir que a cozinha funcionasse bem. O cozinheiro que fazia as compras entendia que era irrelevante comprar produtos de qualidade – para ser mais barato comprava maçãs e batatas de fraca qualidade – e o restaurante pretendia ser um restaurante de luxo e caro e já tinha de competir com outros do mesmo tipo. Batatas de má qualidade não eram poupança eram desperdício, mas o cozinheiro não compreendia. Depois havia todo um conjunto de velhos hábitos soviéticos muito difíceis de mudar – por exemplo o cozinheiro teimava em fazer café de novo somente quando acabava o anterior, o que significava que havia cerca de quinze minutos em que ninguém tinha café para servir no restaurante.

Os seus problemas não se limitavam ao restaurante. No mesmo edifício havia também um “hotel”, também uma antiga residência onde os académicos da província podiam ficar quando vinham a Moscovo. Não se sabia quem geria o hotel, embora eu suspeitasse que alguns dos académicos, que tinham deixado de receber salários e perdido os privilégios tinham naturalmente “privatizado” o edifício. Ora a nossa portuguesa tinha conseguido uns milhares de garrafas em miniatura de bebidas para colocar nos quartos (não havia frigoríficos claro, mas havia uns armários), só que não conseguia, um ano depois de as ter conseguido, um acordo sobre percentagens de lucro.

Ao lado, numas lojas que havia, não conseguia que as empregadas percebessem que as vitrinas se destinavam a mostrar os produtos para fora, para a rua, e não para servirem para serem pintadas com desenhos de pombas e cosmonautas, tornando tudo mais escuro. Assim mostrava-se para a rua apenas a parte de trás de armários e estantes de exposição, virados para dentro. A ideia que uma loja comercial existia para servir os seus clientes era alheia à cultura local – uma loja destinava-se a ser um espaço confortável para as suas empregadas e permitir-lhes com facilidade controlar a mercadoria, posta bem longe do cliente entre um balcão a parede. Tudo eram facilidades para o pessoal, tudo eram dificuldades para o cliente. E por aí adiante.

Não sei onde estará hoje a minha vianense moscovita, espero que bem, mas estou-lhe muito grato pela sua lição, naquela noite que durava desde as quatro da tarde, no mais improvável dos lugares.

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© José Pacheco Pereira
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