ABRUPTO

21.6.03


PRISÕES

João Nogueira no Socio[B]logue continua a discussão iniciada aqui com os “dois tempos” . Algumas notas complementares:

1. A questão dos “dois tempos” tinha para mim um duplo sentido. Um, é o da diferente percepção psicológica do tempo prisional e do tempo “exterior”. Temos debatido esta parte. Mas há uma outra dimensão que também estava presente na nota inicial, que deliberadamente não referia Cunhal : o de como, na narrativa da biografia, se compatibiliza um tempo em que acontecia tudo e um tempo em que não acontecia nada. “Nada” não era para ser tomado à letra, mas significava o domínio de rotinas – uma vez descritas, repetem-se sempre e por isso não se prestam a uma narração . Ou seja: como é que se puxa um fio narrativo através de uma contínua e programada repetição de gestos, que em si não tem novidade. A resposta que dou no livro é a óbvia – através do que Cunhal lê, escreve, desenha e pinta na cadeia.

2. O caso de Cunhal é singular e por isso não se pode generalizar, mas também não pode considerar-se como adquirido que, enquanto preso, foi totalmente imune aos efeitos do encarceramento. Bem pelo contrário, alguns desses efeitos podem ser documentados e faço-o no livro: doenças com uma componente psicossomática, traços de depressão, etc.
O principal testemunho de Cunhal da sua passagem pela Penitenciária é o Estrela de Seis Pontas que, como toda a ficção de Cunhal, é puramente autobiográfica. Tudo o resto ou desapareceu, foi cuidadosamente retirado dos arquivos (por exemplo na Penitenciária existem registos herdados de Bocage, mas nada há sobre Cunhal e Galvão, “desapareceu depois do 25 de Abril”), ou está indisponível. Por isso temos que nos ficar pela Estrela, onde existem, como nas Memórias do Cárcere de Camilo, elementos para descrição do mundo prisional que apontam para os efeitos do encarceramento no autor. No entanto, o que é mais interessante no livro é o nítido processo de identificação de Cunhal com os presos comuns.

3. O mesmo se pode dizer dos desenhos, a que dedico grande parte de um capítulo, onde também é nítida a efabulação de uma relação com um mundo exterior que contrasta com a estéril “presença” visual do mundo prisional. Visitei a Penitenciária, refiz os trajectos possíveis de Cunhal dentro da cadeia, olhei da sua cela para fora, e a pobreza e a tristeza de “vistas” é absoluta.

4. Quanto à cela como “espaço de liberdade”, inteiramente de acordo. São os “outros”, como diria Sartre, que são muitas vezes o inferno. Por isso, a cela pode ser o espaço da “solidão desejada”, mas é-o certamente da “solidão indesejada”. É talvez aqui também que a questão da privação sexual se coloca com mais agudeza. Cunhal na Estrela de Seis Pontas retrata a omnipresença da sexualidade efabulada e real na cadeia com bastante rudeza e realismo.

3. Depois há outros efeitos da “dualidade temporal”, que neste caso são relevantes, como seja o atraso ou a ignorância por parte do preso de acontecimentos fundamentais para a sua visão do mundo e, mesmo para a sua estabilidade psicológica. `Tudo indica, por exemplo, que Cunhal só soube durante o seu julgamento da vitória dos comunistas chineses.

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© José Pacheco Pereira
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