ABRUPTO

20.6.03


PRESENÇA DA HISTÓRIA

A ausência da história nos blogues, como aliás no discurso corrente, foi um tema a que me referi logo nos primeiros dias do Abrupto. Comparado com o número de comentários sobre os “objectos em extinção” (que tinha um traço de história, mas era também directamente vivencial) e sobre a leitura, nunca houve grande resposta sobre a história, confirmando as suspeitas. Quando ontem comentei a ausência de referências ao 11 de Setembro, mesmo apesar da sua relevância para o debate político actual e da sua absoluta contemporaneidade, penso que também existe uma recusa à consideração do tempo histórico como mecanismo de mediação.

Escola e comunicação social são hoje os principais factores de socialização, com a família, que nos “fazem”, por isso são inseparáveis. (Uma discussão acessória, que noutra altura desenvolverei, é a de saber a ordem de importância da família, escola, e comunicação como cultura de massas na socialização das gerações presentes). Paulo Agostinho escreveu-me, relatando a sua experiência de professor e de leitor, a propósito da história :

"Esta é, pessoalmente, uma questão angustiante porque vivo da história, ensino-a (este ano) a noventa crianças de Trás-os-Montes. Peço-lhes muitas vezes que o façam, que pensem sobre a história de que falamos nas aulas. Nos testes, arrisco uma ou duas questões que exigem essa reflexão (naturalmente doseada face à idade). Qual o resultado? Um confrangedor silêncio. Confrangedor para mim, pois sinto que falhei. Sinto-o sobretudo quando crianças (que se julgam bons alunos e têm notas de bons alunos) apenas conseguem repetir o que encontraram no caderno e no livro.

Em conversa com um amigo meu sobre este assunto, aventurámo-nos a colocar algumas hipóteses. Eis a principal: na escola não se pede que os alunos façam reflexões baseadas na realidade. Ou se pede uma memorização dos factos, ou uma reflexão apenas assente na imaginação. Nas disciplinas de língua portuguesa não se ensina a ler, a escrever, a compreender o que se leu e a expor o pensamento. Muitos dos alunos que tenho encontrado em seis anos de ensino não conseguem expor um pensamento próprio de forma clara, por isso defendem-se memorizando os pensamentos e as opiniões do professor e do autor do manual. Naturalmente, muitos não gostam de história. Não os censuro. Eu também não gostaria, se o rosto da história fosse aquele que se vê nos manuais escolares, uma compilação de dados, conceitos e explicações ultrapassados, mal escritos, caoticamente organizados e mal ilustrados.

Basta olhar para o programa do 9º ano para ver o caos daquela estrutura. Passo a alinhar as matérias seguindo a ordem do manuais (e do guia do ministério):
1-Partilha de África e Conferência de Berlim;
2- I Guerra, com as alianças, a guerra de movimentos e de posições, a entrada dos americanos e o armistício;
3- Participação de Portugal na guerra (com explicações que ignoram totalmente os estudos de Vasco Pulido Valente);
4- As consequências da I Guerra;
5- A Revolução Soviética, com um longo preâmbulo sobre a Rússia no tempo do último czar, o Domingo Sangrento, a Revolução de Fevereiro, a Revolução de Outubro, o Comunismo de Guerra, e a NEP;
6- Depois de tudo o que ficou para trás, deveriam os alunos estudar a Implantação da República em Portugal. Regressa-se ao tempo do Ultimato, fala-se do regicídio, da implantação da República, e avança-se até 1926. Tudo isto depois de, um mês antes, de ter falado da participação de Portugal na guerra de 1914-1918. Existe uma lógica nesta estrutura? Talvez haja, mas eu não a percebo (e os alunos muito menos, pelo que a história é, para eles, nada mais que um retalho feito de episódios soltos e sem ligação entre si).

Infelizmente, no secundário a falta de reflexão mantém-se e julgo não errar muito se disser que os alunos do ensino superior, salvo raras e honrosas excepções, não diferem muito dos anteriores.

Os nossos jornais e a restante comunicação social também não reflecte sobre a história, sobretudo porque a desconhece ou porque possui delas ideias gerais (muitas vezes nada mais que ideias feitas por vezes mais próximas do campo da lenda que da realidade histórica). Mas também porque dá trabalho, exige leituras e consultas, exige confirmar dados, citações, exige uma permanente actualização sobre a produção historiográfica. Tudo isto consome tempo que os nossos jornalistas seguramente não possuem, ou se o possuem gastam em outras tarefas.

Pensar a história implica conhecê-la bem e, para isso, precisamos de tempo, disciplina, vontade, gosto, precisamos de compreender a sua importância. Este último aspecto parece-me essencial para se perceber por que razão não se pensa sobre a história. A escola, como se viu, é (quase sempre) incapaz de mostrar que a história é importante. Os alunos citam, sem saberem, uma das personagens amigas da Mafalda (Quino, claro), que exige que a história lhe seja ensinada para a frente e não para trás, porque o que passou já não interessa. E os media também não usam a história para explicar o presente. Não se lhes pede que o façam sempre, mas houve e há situações que o exigem. A guerra da Jugoslávia pareceu a todos um acontecimento ilógico e a roçar o absurdo porque não se explicou o que eram os Balcãs e qual era o passado da Jugoslávia. A história do Estado de Israel também não é referida. E, para fazer referência ao caso da actualidade, para muitos a pedofilia e práticas sexuais com menores parecem males dos tempos modernos e claros sintomas do fim dos tempos, quando são, na verdade, práticas do início dos tempos.

Concluindo, a escola faz da história um relato sem sentido de factos passados e a comunicação social dá-lhe o golpe final ignorando-a.
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© José Pacheco Pereira
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