ABRUPTO

3.6.03


NOTAS EUROPEIAS


1. Ontem , à chegada a Estrasburgo, o tempo estava de tempestade . Quente e húmido , denso . Estou feito , como os meus colegas, animal de carga puxando uma mala com rodas na transumância para a Alsácia . È fácil aos locais identificar os membros daquele grupo de mala de rodas que cai aqui uma vez por mês e , só cai à força , porque os franceses , prevenidos , colocaram nos tratados europeus a obrigação de vir a Estrasburgo doze vezes ao ano e o Parlamento não tem o poder de escolher a sua sede . Imagino Sir David Attemborough , dependurado numa cornija , a gozar com a "exotic species" destas aves e os seus estranhos hábitos.

2. À entrada do edifício estava um grupo folclórico alemão ou austríaco , dos muitos que visitam a "instituição" . Como as bandas filarmónicas portuguesas , vem da província profunda , vestidos de azul e branco e chapelinhos tiroleses , com majoretes e cornos de caça , fazendo um grande fragor com os metais e percussão , enchendo de barulho o pátio de entrada . Quem conheça o Parlamento em Estrasburgo sabe que é uma espécie de bunker prisional (parece que o arquitecto que o fez era especialista em prisões ) e esse pátio sem vistas é o centro de uma oval de betão e vidro , triste e cinzenta (castanha) . Apesar de tudo , a banda azul e branca ( parecia o FCP ) era a única alegria e o som marcial animava as paredes . Do mal o menos .

2. Hoje está um sol radioso em Estrasburgo e estas cidades do Norte mostram uma capacidade para se virar para a luz , que não existe em Portugal . De repente tudo muda , tudo vem para a rua , tudo se solta . Passo pelos livros . Estrasburgo tem várias boas livrarias e alfarrabistas ; a Kleber é a melhor , a FNAC muito de província , a Quai des Brumes forte na literatura , muito francesa , muito Tel Quel , a Oberlin , forte da sua idade , nascida em 1817 , e a Bouquinerie des Soeurs e L' Insomniaque , bons alfarrabistas . Nas rua há também muitas bancas de livros . Eu e o Vasco fazemos verdadeiros saques , a mais das vezes nos alfarrabistas , porque a edição francesa é prolixa mas nem sempre interessante .

3. No entanto , há especialidades estrasburguesas como a teologia , em que todas as livrarias e alfarrabistas são bons . Estrasburgo é uma cidade católica , protestante e judaica , típica de uma "velha Europa" que , para os lados de lá da fronteira , Hitler destruiu . Tem uma célebre Faculdade de Teologia Protestante e uma tradição sólida de pensamento protestante , mas há muitos e bons livros de teologia judaica e católica . Daqui a uns anos não faltará a teologia islâmica , se se tiver em conta que , em cidades como Mulhouse , onde trabalham muitos portugueses , a segunda religião é a muçulmana . A taxa de natalidade fará o resto .

4. Para cá chegar passei pela fronteira franco-suiça , em pé de guerra por causa do G8 . Os manifestantes anti-globalização versão "anarquista" (suspeito que esta designação é incorrecta e desculpabilizante , porque muitos são apenas esquerdistas radicais e membros das organizações anti-globalizadoras com face mais pacífica ) entretém-se a destruir lojas em Genebra e Lausana . A amplitude dos conflitos é grave , mas há uma estranha complacência com estes "casseurs" . Se fossem da extrema-direita , quantos editoriais inflamados se escreveriam , quantos gritos que a Republica estava em perigo se ouviriam ?

4. Se entrarmos num gabinete de um dirigente regionalista alemão de um dos länder , estarão três bandeiras : da Alemanha , da UE e da região , o mesmo na Itália . Mas se fizermos idêntica visita na Catalunha ou no País Basco estarão apenas duas : da UE e da região . É por isto que a ideia de uma "Europa das regiões" , implicando uma relação directa das instâncias europeias com as regiões , tem todos os riscos . Sublinhe-se de passagem , que o federalismo alemão é muito aberto quanto à soberania nacional , mas não admite que se toque , com um dedo sequer , nos poderes dos länder .

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© José Pacheco Pereira
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