ABRUPTO

16.6.03


LER DUAS VEZES 4

1. Nuno Mota Pinto do Mar Salgado lembra as suas duas leituras de Os Maias de Eça :

"Li Os Maias pela primeira vez quando estava no liceu, com cerca de 15 anos. Voltei a lê-lo quando tinha cerca de 30 (há dois ou três anos). Talvez fruto de, da primeira vez, ter feito uma leitura conduzida pela professora (excelente diga-se) e pela aplicação do programa liceal de Português, a verdade é que então a impressão que mais fortemente ficou inscrita em mim foi o carácter trágico do romance entre Carlos da Maia e Maria Eduarda. A impossibilidade desse amor e a infelicidade gerada por esse encontro improvável impressionaram o meu espírito adolescente.

Aquando da segunda leitura, toda a história de amor me pareceu apenas um pretexto para uma obra notável de caracterização da sociedade da época. Admirei a ironia corrosiva das descrições certeiras do conservador e monástico ambiente universitário coimbrão e de uma burguesia e aristocracia lisboetas incultas e ambiciosas que vivem para e à volta do Poder (dois ambientes que conheço razoavelmente nos dias de hoje). Fiquei preso pela exposição detalhada e brilhante do estilo de vida da época. Dei por mim a pensar que muito do que então foi escrito tinha actualidade (acho que não fui muito original neste pensamento).
Estas diferenças levaram-me às seguintes reflexões:

- A mesma obra tem impactos diferentes e é lida forma diversa consoante o grau de maturidade do leitor. Um espírito adolescente, pronto a entrar nos jogos, manhas e imprevistos das seduções e das relações amorosas é provavelmente presa fácil para uma história de amor simples e trágica.

- A leitura orientada, que é o grosso da leitura dos portugueses (muitos deles não lêem mais do que aquilo a que são obrigados no liceu), pode dar uma visão truncada das obras, não permitindo a apreensão de toda a sua dimensão. Isto é ainda mais verdade quando o ensino do Português se centra talvez em demasia na compreensão dos aspectos formais de uma obra. Gasta-se imenso tempo em desagregações e classificações das figuras de estilo usadas e na explicação da inclusão de uma obra em movimentos literários, em vez de explicações mais simples do impacto e da importância do que lá está escrito para a compreensão do que somos.

- O facto de se ler uma obra com mais maturidade não quer dizer que a sua compreensão seja maior. Quando reli os Maias já era mais vivido, mais viajado, tendo inclusivé já estudado no estrangeiro. Ora, esta condição pode ter-me feito embarcar com facilidade no estilo notória e declaradamente estrangeirado de Eça. A esta luz, o exercício de transposição de descrições dos Maias para os dias de hoje pode facilmente cair numa manifestação de snobismo intelectual que não me interessa e que tento contrariar. Isto é ainda mais válido para outras obras de Eça como a Ilustre Casa de Ramires ou o Conde de Abranhos. A experiência aumenta a clarividência, mas também consolida e aprofunda vícios de raciocínio e de atitude mental.
"


2. João Costa lembra as palavras de Peguy , citadas por Steiner, sobre o papel da leitura :

"Une lecture bien faite...n'est pas moins que le vrai, que le véritable et même et surtout que le réel achèvement du texte, que le réel achèvement de l'oeuvre; comme un couronnement, comme une grâce particulière et coronale...Elle est ainsi littéralement une coopération, une collaboration intime, intérieure...aussi, une haute, une suprême et singulière, une déconcertante responsabilité. C'est une destinée merveilleuse, et presqu'effrayante, que tant de grandes oeuvres, tant d'oeuvres de grands hommes et de si grands hommes puissent recevoir encore un accomplissement, un achèvement, un couronnement de nous...de notre lecture. Quelle effrayante responsabilité, pour nous."

( Charles Péguy, Dialogue de l'histoire et de l'âme paienne (1912-13) citado por George Steiner , "The Uncommon Reader " (1978) , publicado em No Passion Spent, Yale University Press, 1996 )

Obrigada aos meus amigos Latinista Ilustre e Jaquinzinhos ( bizarra combinação entre o latim e o peixe ) que me ensinaram a colocar a reprodução do quadro de Chardin, Le Philosophe Lisant (1734) , que inspira o ensaio de Steiner .





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