No início de um livro já esquecido de um autor também já esquecido, The Go-Between, de Leslie Poles Hartley, há uma frase muito mais lembrada do que o livro: "The past is a foreign country: they do things differently there",
o "passado é um país estrangeiro, lá fazem as coisas de modo
diferente". A frase é do mais certeiro que há e quem lida com as coisas
da história e da memória, ou seja, do tempo e da vida, sabe como "lá" as
"coisas são diferentes". Um dos problemas dos nossos dias é a enorme
usura do passado como memória, como experiência outra.
Não sei
se aprendemos muito com o passado e também duvido que ele tenha qualquer
"lição" para nos dar, mas conhecê--lo torna o presente mais
interessante, mais complexo e menos presunçoso nas ilusões de que se faz
a "actualidade". A nostalgia do passado é uma estupidez, porque, de um
modo geral, o passado era pior do que o presente, mas a falta de memória
transforma esta estupidez num modo de vida. Hoje, em Portugal, há
centenas de milhares de pessoas que vão à Internet, usam redes sociais,
tem páginas do Facebook cheias de "likes" e de "amigos", "twitam"
que nem passarinhos, e no entanto contribuem para uma das regras
universais da Internet, "mete-se lixo, sai lixo". E nem sequer é líquido
que o seu mundo "comunicacional" seja mais rico, mais informado, embora
seja certamente mais democrático e demagógico e mais interactivo.
Regresso
à minha memória de leitor de jornais no Porto dos anos sessenta, "país"
mais que "estrangeiro". E deixo de lado, neste caso, o pano de fundo
que por si só mostra como o passado não é por regra melhor do que o
presente: deixo para outra vez a questão da censura. Estamos a falar de
um mundo em que não há nenhuma palavra que não tenha passado pelo olhar
de censores e permitida por eles. Convém nunca esquecê-lo.
Há
quarenta anos, nos anos sessenta e setenta, havia em Portugal dez jornais diários
que tinham público e função. Tinham também identidade e pouco se
confundiam. Em Lisboa, de manhã, publicava-se o Diário de Notícias, o Século, o Diário da Manhã, (depois A Época), a República*, o Jornal do Comércio; e à tarde, o Diário Popular,A Capital e o Diário de Lisboa. A estes jornais de Lisboa, somavam-se três do Porto, o Jornal de Notícias, o Comércio do Porto e o Primeiro de Janeiro.
No Porto, a tentativa de criar jornais de tarde falhou sempre, pelo que
eram os jornais da tarde de Lisboa que chegavam à noite, e eram ainda
distribuídos pelas tabacarias de café, para o elevado número de pessoas
que saíam à noite para tomar café no seu bairro.
As estranhezas
do "país estrangeiro" são já várias. A primeira é que havia muitos mais
jornais diários, sendo que deste grupo apenas sobrevivem o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, a que entretanto se somam hoje o Correio da Manhã, o Público, o i,
e os jornais económicos, tudo junto menos de metade e quase todos eles
em crise com honrosas excepções. Entretanto, acabaram os jornais de
tarde, que entre outras coisas permitiam um ciclo de duas saídas diárias
de imprensa, com maior capacidade de actualização. Os jornais fechavam
também mais tarde, e por isso as notícias que uma edição diária podia
compreender cobriam quase tudo até à noite e não até ao fim da tarde
como se passa hoje. Os jornais tinham as impressoras no mesmo edifício,
ou muito perto, e não havia horários de trabalho muito definidos. Havia
um turno que fechava o jornal e podia trabalhar até às duas ou três da
manhã, que depois os tipógrafos se encarregavam de colocar o jornal cá
fora às cinco ou seis da manhã, para seguir de comboio ou de camioneta,
para todo o país.
Também não era bem "todo o país" porque os
leitores do Porto não liam os jornais de Lisboa e vice-versa. No Porto,
os três diários eram muito diferentes entre si, como aliás todos os
jornais tinham uma forte identidade e "cultura". Deixando de parte o
vulgarmente conhecido como "diário da manha", a voz da ditadura e que só
era lido ou exposto nas repartições públicas, o Século e oDiário de Notícias eram fiéis à sua tradição, de serem respectivamente porta--vozes oficiosos do poder e dos interesses económicos, enquanto a República
era a última sobrevivência do republicanismo maçónico clássico, sem
grande impacto fora da "abertura" das campanhas eleitorais. Dos jornais
da tarde, o Diário de Lisboa representava uma certa tradição liberal no plano político.
Nos anos do "marcelismo", vários destes jornais, com relevo para o Diário de Lisboa, conheceram uma considerável "modernização" de estilo, conteúdo e colaboradores, que deram origem a inovações como o Diário de Lisboa Juvenil, e A Mosca, o antepassado do Inimigo Público.
Todos tinham suplementos literários, com equipas de colaboradores que
incluíam muitos intelectuais e escritores, e as suas críticas e
polémicas eram temidas e seguidas. O Comércio do Porto e o Diário de Lisboa tinham suplementos reputados. Mais sinais de que o passado é um "país estrangeiro".
Olhando
para os jornais do Porto, neste texto escrito por um leitor do Porto,
não havia dúvidas quanto à sua forte identidade. O Jornal de Notícias
era o jornal popular, de quem se dizia que torcido escorria sangue, com
grandes reportagens sobre acidentes e crimes, logo tido como jornal das
"classes baixas". O Primeiro de Janeiro era um típico jornal do
Porto, cidade "burguesa", comerciante, industrial, "do trabalho", sólida
nos seus fundamentos liberais, com uma excelente página cultural (a
cores, amarela e vermelha), com uma forte contribuição dos
"presencistas", e uma igualmente excelente página de banda desenhada,
com o Coração de Julieta (de Stan Drake), para os corações femininos, e O Reizinho (de Otto Slogov), e o Príncipe Valente (de Hal Foster), não se sabe bem para quem, mas ficaram lá na memória. O Comércio do Porto
era outro produto nortenho, obra em grande parte de Bento Carqueja, um
intelectual também hoje já tão "estrangeiro", filantropo, introdutor dos
estudos económicos, naturalista e autonomista açoriano. Já não se fazem
homens destes.
O jornal tinha um edifício próprio de cantarias
de granito elaboradas (hoje vendido a um banco) na Avenida dos Aliados, e
com um interior de madeiras trabalhadas, tudo caríssimo, feito, ó "país
estrangeiro", para o jornal, em cuja cave estava a rotativa. Recordo-me
de ver numa sala da direcção um mapa de Portugal coberto de alfinetes
negros a norte do rio Douro, cada um marcando uma terra que tinha um
correspondente do jornal. A força do Comércio era a sua rede de
correspondentes, que faz com que muitas terras tenham hoje história
porque ela ficou registada nas páginas deste jornal do Norte.
As minhas memórias de todos são vivas porque colaborei em dois dos três, no Jornal de Notícias no Suplemento Literário, então dirigido por Nuno Teixeira Neves, e no Comércio do Porto, onde com Óscar Lopes alternava na crítica de livros. Nesses anos também escrevi no inevitávelDiário de Lisboa Juvenil, onde levei algumas admoestações mais que justas do Mário Castrim, mas onde ganhei ex aequo o
primeiro prémio de ensaio, junto com um tal "José Mariano", Mariano
Gago. Por ironia, nunca escrevi no jornal que se lia em minha casa, o Primeiro de Janeiro, que hoje ainda sobrevive em estado quase terminal.
Este
mundo dos jornais diários tinha abundante companhia, revistas políticas
e literárias, revistas "ilustradas", banda desenhada, e o solitário
semanário Expresso, surgido em vésperas do 25 de Abril. Mas isso é
outra história, também feita muito de "estrangeiro", porque nada de
semelhante existe hoje.
* A República era vespertina. Agradeço a Manuel Falcão e a Jorge Carreira Maia a chamada de atenção para alguns erros de detalhe.