| ABRUPTO | 
| semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________ 
 | 26.3.12   
ESTÁ O ESTADO A TORNAR-SE MAIS FORTE OU MAIS FRACO? 
Como uma grande quantidade de portugueses, recebi a carta das Finanças 
exigindo-me que "efectue a activação da caixa postal electrónica no 
serviço Via CTT". Isto foi corrigido para a ortografia portuguesa
 em vigor, porque o que lá vinha era "ativação", "efetue" e 
"eletrónica", tudo erros de ortografia. O Estado não respeita sequer a 
lei, visto que o Acordo Ortográfico não está em vigor. Depois explica-me
 que a "activação" é "obrigatória" e que se não o fizer até 30 de Março 
terei uma multa. 
A carta é típica do burocratês associado a um claro 
laivo autoritário que todas as comunicações das Finanças têm. Para as 
Finanças não há cidadãos, mas potenciais fugitivos dos impostos e 
fala-lhes sempre num tom inadmissível num Estado democrático, para quem 
não cometeu nenhum crime, e não passou nem a servo, nem a súbdito. 
Informa-me a extensa carta de determinados procedimentos, de um modo 
geral complicados para o comum dos mortais, impõe-me um prazo curto e, 
de uma ponta à outra, está cheia de ameaças que se percebe serem 
expeditas e sem contradita. Caso se pretenda contestar, paga-se primeiro
 e depois entra-se numa via-sacra, cara e demorada, que o comum dos 
cidadãos não tem conhecimentos, nem saber, nem dinheiro para percorrer.  A ironia da história é que esta "obrigação" vem tentar ressuscitar um dos grandes falhanços, com correspondente prejuízo dos dinheiros públicos, do Governo Sócrates no seu início: criar um endereço electrónico para todos os portugueses, a Via CTT. A dita Via, na qual foi investido dinheiro, publicidade, máquinas colocadas nas estações dos CTT, tudo inaugurado pelo primeiro-ministro de então, que exibiu ao país o seu novo endereço electrónico, falhou redondamente. Apenas um escasso número de pessoas aderiu ao novo serviço, os relatos testemunhais sobre o serviço mostram a sua péssima qualidade e o mau atendimento nas estações dos CTT. As reclamações eram respondidas com sobranceria pelo então gestor socialista dos CTT, depois as máquinas avariaram e foram retiradas, e a Via CTT passou ao esquecimento. O Governo Passos Coelho veio retirá-la do lixo, para a tornar obrigatória na relação com as Finanças. Para muitas pessoas isso vai aumentar a sua dependência de ajudas - há gente que não tem computador, nem acesso à Internet, nem literacias para o usar, nem estação do correio próxima da sua localidade, nem junta de freguesia que faça o apoio, etc., etc. - e para outras, os que se movem à vontade no computador e na Internet, vai aumentar a complicação, obrigando a um endereço electrónico complementar, a uma nova caixa de correio suplementar a ver ou a agregar, tudo obviamente inútil porque bastava que houvesse a obrigação de ter um endereço de e-mail declarado às Finanças e nada mais. Mas o Estado obriga à força a complicar a vida às pessoas, e há multas no dobrar da esquina. Este é um exemplo menor num mundo maior, o das Finanças, onde o autoritarismo do Estado e o chicote antecedem a informação e a normal relação entre a administração pública e os cidadãos. Veio do Governo Sócrates, que usou politicamente o fisco e a ASAE, para criar uma imagem de autoridade e determinação e, quando lhe convinha, metia a autoridade no bolso para dar ares de amigo do povo, como aconteceu com a ASAE. Mas não sofreu qualquer recuo, bem pelo contrário, com o actual Governo. Ora, uma das narrativas usadas na actual legitimação do poder é a de que se está a emagrecer o Estado, a remeter o Estado para as suas funções essenciais - que no discurso liberal clássico eram as funções de soberania, relações internacionais, defesa e segurança, mas agora não se sabe quais são, não sendo nenhuma destas de certeza. Um pseudodiscurso liberal circula como elemento legitimador, acentuando aquilo a que os anglo-saxónicos chamam o empowerment das pessoas e da sociedade. Ora, com excepção do real empowerment de certos sectores económicos e da elite que circula entre a política, os grupos económicos, as fundações, os bancos, as "comissões de acompanhamento", etc., uma coisa é certa: empowerment dos cidadãos é que não há. Para os que pensam que isto é marxismo, talvez uma ou duas prateleiras de estante de autores liberais, e várias estantes de autores "burgueses", lhes expliquem alguma coisa sobre os malefícios de pensar a preto e branco sobre o poder social, as classes sociais, as elites, a exclusão e as oligarquias. É por tudo isto que já há algum tempo escrevo sobre o risco real de sairmos deste processo com um Estado mais forte, mais poderoso, mais intrusivo, mais autoritário. Como no discurso pseudoliberal só se considera o liberalismo económico, confundindo-o com a pulsão liberal, que vê a liberdade nas sociedades como muito mais do que a retirada do estado da economia, ainda por cima feita mais por necessidade do que escolha, percebe-se pouco o que se está a passar. Percebe-se pouco que o que se está a passar é mais uma redistribuição do poder, do que uma libertação da sociedade, 
O 
Estado está mais pobre, deixou de ter dinheiro para muito que fazia? 
Verdade, mas isso não significa que esteja mais fraco, significa apenas 
que tem menos dinheiro. Está o Estado-providência a encolher, com uma 
progressiva retirada do Estado de muitas funções sociais? Verdade, mas a
 substituição de um Estado-Providência por um estado assistencialista 
não diminui o seu papel "providencial", apenas muda a concepção do seu 
lugar e função, substituindo-se um mundo regulado de direitos colectivos (e de 
expectativas) por um mundo mais pontual de protecção individualizada aos
 pobres. Está o Estado a recuar de algumas das suas prerrogativas de 
decisão em matéria de economia, de sociedade, de vida das pessoas? Não 
está. Bem pelo contrário. Continua a ser impossível fazer um grande 
negócio em Portugal, sem o beneplácito do Governo, e, a um nível mais 
localizado, sem o apoio da autarquia, processos como as privatizações 
continuam a ser feitos de forma discricionária, ao mesmo tempo que a 
regulação não existe ou está subordinada aos interesses dos sectores 
regulados. Mudou-se significativamente a subsidiodependência, em áreas 
como a cultura? Não, apenas não há dinheiro para manter os subsídios e 
mesmo assim não todos. Como acontece em muitas áreas, a falta de 
dinheiro impede a manutenção dos velhos hábitos de "encosto" ao Estado, 
principalmente para os pequeno e médio-subsidiados, mas o princípio não 
foi alterado. Quando tornar a haver dinheiro, ele correrá pelas mesmas 
valas para os mesmos campos. O Acordo Ortográfico, um exemplo que devia 
envergonhar todos os liberais genuínos, tem sido travado? Bem pelo 
contrário, este Governo continua a implementá-lo na fase crítica da sua 
imposição às escolas. O Estado acabou com abusos de vencimentos e 
desigualdades escandalosas nos salários e prebendas que paga? Não, 
passou a haver "excepções" para regras cada vez menos gerais e isso 
ainda reforça mais o poder de quem decide.  
Os exemplos são muitos e a
 continuidade com o Governo anterior uma regra, embora a crise acentue a
 fragilização do cidadão face ao Estado e essa seja uma diferença 
importante. Não é o Estado que está mais fraco, é o cidadão que está mais débil. O navio-almirante continua a ser as Finanças, cujo poder vai
 muito para além da lei (para os remediados e pobres), seguido, pela 
discricionariedade nas decisões económicas, associado a um processo 
geral de concentração do poder num momento de grande fragilização 
institucional. Com excepção meritória do Tribunal de Contas, a justiça 
está descredibilizada e actua de modo pontual e caótico, ou seja, 
injusto. O Tribunal Constitucional tornou-se numa letra morta, 
permitindo, em nome das costas largas da "emergência nacional", a 
subversão da sua função. O Parlamento, dominado pela sua lógica habitual
 situação/oposição, desprestigiado e acossado, não tem papel na 
expressão das preocupações populares. Os sindicatos ou estão domados ou 
enfraquecidos, e a sociedade civil, atingida pela crise do seu sector 
mais activo em termos de opinião pública, a classe média, não tem vigor 
nem voz que se faça ouvir. A comunicação social ou funciona como espelho
 mimético do poder, ou, atravessada pela situação de crise, apenas 
sobrevive. É verdade que o Estado faz muita coisa porque o deixam fazer, quer porque os cidadãos não têm poder, nem capacidade financeira, para se opor ao que pensam ser injustiças, quer porque concordam com medidas intrusivas da sua liberdade e privacidade, principalmente no caso da segurança. Operações-stop com buscas, câmaras de videovigilância, formulários estatais ou consentidos aos bancos e instituições de crédito com devassa da privacidade, muito para além do aceitável e muitas vezes cláusulas abusivas, tornaram-se "habituais". O abuso de posição dominante tornou-se uma regra na economia, na sociedade, no Estado, em nome da crise e da "emergência". Não, caros amigos liberais, daqui não vai sair um Estado esbelto e essencial, acompanhado por uma sociedade vigorosa e dinâmica. Vai continuar um Estado torto, excessivo e injusto, mas mais prepotente e autoritário. 
Eu não queria vir com o argumento da
 história, mas não surpreende quem a conheça, porque os partidos são elementos 
endógenos do poder estatal e a partidocracia não mudou, reforçou-se. Tem
 sido sempre assim, o que nasce torto dificilmente se endireita. 
(Versão do Público, 24 de Março de 2012.)  (url) 
  © José Pacheco Pereira  |