ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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3.6.03
VASCO GRAÇA MOURA INÉDITO PARA OS LEITORES DO ABRUPTO
Quando , há quinze dias , no Mil Folhas do Público , a Isabel Coutinho falou do Abrupto , escreveu : "só me apetecia que o Vasco Graça Moura também aderisse à moda dos blogs" . O pedido teve eco nalguns blogs , na Janela Indiscreta por exemplo . Eu falei ao Vasco Graça Moura e pedi-lhe um poema "de resposta" no Abrupto . O Vasco não se limitou ao poema para o blog , mas faz a divulgação "em première mundial" de um poema seu trilingue . Aqui fica uma nota do Vasco , o poema para o blog e a " aretnap a pantera " . ____________________________ "Há meia dúzia de anos traduzi "A pantera", uma das peças mais célebres dos Neue Gedichte do Rilke, tendo-a incluído em apêndice à minha tradução dos Sonetos a Orfeu. Há poucas semanas, o Joaquim-Francisco Coelho escreveu-me de Harvard, onde é professor, a enviar-me a sua própria tradução da mesma pantera. Achei que o facto de ele ser brasileiro e eu português tinha alguma influência nas nossas versões. E dias depois fiz o ciclo que lhe envio para o seu blog, em première mundial (!!!), por me parecer que corresponde a algumas das solicitações que recebeu a meu respeito... Trata-se afinal de um espelhar e contra-espelhar de ironias, em que às tantas o próprio Rilke escreve a Lou Andréas-Salomé, conversa com Rodin, engendra um soneto e "posa" para a pantera... A qual, se estivesse na Internet, por certo se poria também a fazer um soneto. Qualquer coisa deste tipo: não há nada no mundo que me pague para aqui estar. não há nada que jogue e nada que responda ou faça blague por eu, panteramente, estar no blog. não há verso do rilke que me afague, por mais que o vgm aqui dialogue com o jpp, quer me embriague, quer passe fome, ou me espreguice e drogue. sou a pantera fora da internet. passo lá por acaso. depois saio e volto às grades onde alguém me mete. e rujo e rosno e mordo e não me ensaio nada nas piruetas da disquette de apagá-la depois. só me distraio. Saudações ao seu público bloguista. Vasco Graça Moura _____________________________ aretnap a pantera (para Joaquim Francisco Coelho, por termos ambos traduzido “Der Panther”, de Rainer Maria Rilke) 1. fomos os dois à caça da pantera que estava já da jaula sob o tecto; na mesma língua e em cada idiolecto, apanhá-la inteirinha, quem nos dera! mas clonado, que fosse não se espera dorso verbal em músculo inquieto, e ao lê-lo, eu me felino e me arquitecto, pois me pantero, e mais, se reverbera noutro registo a língua subtil que, de cada vez que a dupla se faz frente, é jogo especular no abismo, acaso devíamos levar a rainer rilke esta parelha opaca e transparente à trela, quando formos ao parnaso. 2. as três irmãs, não digo as de tchekov, as três panteras, sendo uma mais velha que sempre as outras duas vê de esguelha e a quem a semelhança não comove, vêm rosnar-me à cabeça, sem que prove seu coração, nem musa, voz, centelha, céu, chão, mar, bicho, flor, fruto, bodelha, nem quando faz calor, ou venta, ou chove. são pura indiferença que imagino saída da retina e da rotina que em oxímoro as veja e traga e leve, e afirme e negue o seu verbal destino que mesmo no que afina, desafina: panteras podem ser da cor da neve. 3. as feras vivem junto de um reboco sombrio de argamassa com o mundo e o seu próprio rugir é vagabundo, como se à noite fosse apenas troco de o coração, notado num bloco, a quente, a frio, fúnebre e jocundo, dever vazar o sangue até ao fundo dos muros do silêncio. e o tempo invoco para que esse rugir, ao dar a volta, e ao rasgar-se nas farpas de uma vala, se faça um pó distante amortecido e volte a concentrar-se e, posto à solta, se transforme em angústia e a dispará-la venha o seu cavo eco em meu ouvido. 4. atrás das barras lia-se o felino, e eram catorze, próprias do soneto, entrecortando o ágil dorso preto, elástico, estirado, repentino. depois, quando ao papel cabeça inclino, alargo da prisão o esqueleto e quando desarmado nela a meto, já quase sem cautelas me rotino. porém, não esperava ver, após este preliminar de uma abordagem, que tanto pedigree ali se espere, a reunir pantera e albatrós e tigre e cotovia, em homenagem, a rilke, borges, keats, baudelaire. 5. quando a pantera, liebchen, és tu, feita distância concentrada em mim, e entre anestesia e frenesim não sei que te dizer em paris, lou, se nada de mim ponho agora a nu e dentro apenas quero, de marfim e arte nova, o ser que digo assim, em arabesco, opalas e bambu. talvez estejas farta, eslava minha, por isso que a pantera te recorde relâmpagos da alma nas estepes e a própria solidão nadando asinha nas veias da pantera que te morde os tornozelos quando ao dorso trepes. 6. volto a fechar a jaula e não me iludo: três panteras assim não são demais, geram-se umas às outras nos sinais, podem multiplicar o seu veludo, e como no xadrês, como no judo, jogo e real são sempre desiguais. a uma, à sorte, as frases cordiais: o que é para ela o nada? o que é o tudo? que deuses esmaltaram os seus dentes? mandando o seu leitor se faire foutre em mudos arremedos evidentes, de que carne da alma então se nutre? ou acaso desfaz, como um abutre, um fígado já solto das correntes? 7. num pesadelo, quando a vi, ao calhas, pantera de palavras, traduzi-a e com o óleo de uma almotolia no pêlo, escorregou por entre as falhas; comeu na ida todas as migalhas que o sono em sobressaltos produzia automáticamente na teoria da tradução e em muitas outras tralhas. puta pantera, não abandonavas a língua de partida e o lampejo com que na tua pele a recitavas, mesmo que a de chegada, em teu bocejo, não te poupasse ao oco das aljavas e dele te fizesse um quase arpejo. 8. ah, espreitar na selva entre lianas, para entrever o brilho amarelado de uns olhos que podia ter pintado rousseau, douanier cheio de ganas! ah, coração modelo para as manas brontë, ou para um petrarca desolado que expôs da humana fera um bom bocado até camões cantar tigres hircanas! e era o luto na vida, diz pessoa, que não sabia nada de panteras, nem de jaula que a luz furtiva acoite se na fenda das pálpebras se coa, trazendo à nossa era as outras eras, assassinando e dando vida à noite. 9. vai-se a pantera em sombra, extravagando. secaram as palavras no seu fojo. ficaram só as expressões de nojo de alguém poder morrer, sem saber quando o bicho voltará, agoniando as vísceras e a alma. e havendo bojo, esconderijos, luras, silvas, tojo, que se usam para a ir camuflando, não se sabe em verdade onde ela está: pode voltar ou não. pode rugir, fugir, morder o tempo atrás das barras. pode vir pela noite. e oxalá não fique feita em pedra a encardir. e despedace a lira em suas garras. 10. - chez vous, la forme s'ouvre, mon cher maître, au vrai insaisissable. je voudrais en faire autant, pourtant un coup de dès ne perce ni les bêtes, ni leur être... - la post-modernité avant la lettre, vos mots pourront peut-être en dire assez, laissez-les miroiter, pétrissez-les... - mais je veux m'effacer et disparaître pour n'exprimer que leur an sich dans leur existence pure et leurs élans... - si un chat est un chat, mon cher poète, il sera chatoyant, mais grâce à vous... - ich weiss, monsieur rodin, merci beaucoup. la panthère! paris est une fête! 11. Der Panther befand sich in der Leere tief des gesteinerten Herzens. Da verbrannte kein Blut mehr. Zwar nur die geahnte traurige Enttäuschung des Daseins rief. In seinen Augen langsam verschlief des Tiers Erinnerung, vielleicht die sogenannte Regenbogenwelt, vielleicht die gespannte Muskelkraft, die dann um nichts griff. Der Raum ist begrenzt und lautlos. Hast Du den Panther, o Gott, mit der Leier noch einmal gejagt und geschlagen? Ach, singe nicht mehr, mach die Augen zu, hör mal dieses Geräusch, der Lüge zur Feier: damit wird der Überträger übertragen. 11. no oco fundo onde a pantera estava do coração de pedra, não ardia o sangue já. triste se pressentia o apelo do existir que se enganava. devagar em seus olhos se ensonava a lembrança animal, talvez um dia o mundo do arco-íris; dir-se-ia que a força muscular nada agarrava. o espaço é limitado e mudo. tu, acaso o bicho agora com a lira, caçaste, ó deus, deixando-o aturdido? não cantes mais e fecha os olhos no ruído que celebra tal mentira: assim o tradutor é traduzido. 12. farta de ver um homem de olhos claros e bigode mongol parado em frente às grades, a pantera astutamente concebeu um poema. nos preparos foi notando de cor os termos raros, dando sinais que fossem passar rente, mas sem melancolia, ao vulto em gente, especado e mordido com aparos de poeta em cursivo. esse retrato, sem subjectividade de animal, no vulto atrás das grades intuiu. e o ponto de visão dela era exacto: equidistante às barras de metal era um e outro. e ela desistiu. 13. nunca ao pêlo das sílabas escape alguma malha feita pelas sete letras reordenadas: aretnap, panrate, terapan ou naparet, ou, se se preferir, mesmo etarnap: em anagramas vários se reflecte (já agora samargana) o chape-chape em que o real no verbo se derrete. mas não sendo a pantera um leopardo, nem lince da malcata, quando não odrapoel ou ecnil seria, o arbítrio de seu nome é sem resguardo, ãv palavra vã no espelho vão, sonoridade a silabar bravia. 14. para encontrar oculta a simetria além do espelho, uivando pelas luas, não penses que a pantera individuas tendo em conta o que sabes. a ironia tecnicamente ruge e acrobacia não põe à vista quando faz das suas, a devorar também as carnes cruas dos nomes às avessas. sangraria o engano em trompe l'oeil, curto-circuito, relâmpago inefável? o que for aqui perde o sentido. é só fortuito. as outras qualidades lhe vai pôr, regulando a medida a seu intuito, e desmedindo-a, o próprio tratador. 15. e voltámos da caça, remoendo efeitos de prosódia e de sintaxe. cada pantera é assim: primeiro dá-se a ver, quando ninguém a está vendo. talvez deitar-lhe à pele algum remendo que a noite porventura facultasse, quando a palavra a mais a esburacasse mas buracos a menos fosse tendo... que importa? ficará fotografia da expedição: armados de canetas e com um pé no dorso do animal. há uma pantera tensa em cada dia, um ser que é de florestas e provetas, todo em literatura ocidental. dois subprodutos capriccio a “pan-pan-te-te-te-te-ra”, gaguejava um epí-pí-pí-pí-pí-go-gono triste, “a con-con-di-di-ção es-cra-cra-cra-va, al-gu-gu-gu-ma vez sen-tis-tis-tis-te? ven-do o chi-chi-chi-co-co-tem ris-ris-te que o tra-tra-tra-tra-dor des-des-tra-tra-va? a tu-tu-tu-a fau-fau-ce bra-bra-va quan-quan-quan-tas ve-ve-zes a-bris-bris-te? é cer-to-to-to que eu ga-ga-gue-gue-jo, to-to-da-vi-vi-via pre-ve-ve-jo que-que vais mor-mor-der o en-go-go-go-do e à noi-noi-noi-te fi-fi-fi-carás so-sob o bi-bi-co de ga-ga-gás, pois ten-ten-tens o tem-tem-po-po todo”. capriccio b o verso errado, marília, tem uma sílaba a menos, alguma a mais, ou, mesmo duas sendo, às doze ou treze chega, e é sempre assim, quando ora escorrega de nove para dez ou onze e também se desmede das medidas em que porém quando acerta fora do sítio e sem saber técnicas heróicas que emprega, ou sáficas, sem quarta, oitava sílaba, nega o verso regular que lhe convém. cruzes canhoto, que mais difícil é fazer mal do que fazer bem e aqui é tempo de desculpar a pantera, que assim desmelodiosa, posta à ré, não faz sentido nenhum e nem a vi, nem revi, nem trevi, nem tetr... (bolas!) como era. VASCO GRAçA MOURA (url)
© José Pacheco Pereira
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