ABRUPTO

3.6.03


VASCO GRAÇA MOURA INÉDITO PARA OS LEITORES DO ABRUPTO

Quando , há quinze dias , no Mil Folhas do Público , a Isabel Coutinho falou do Abrupto , escreveu : "só me apetecia que o Vasco Graça Moura também aderisse à moda dos blogs" . O pedido teve eco nalguns blogs , na Janela Indiscreta por exemplo . Eu falei ao Vasco Graça Moura e pedi-lhe um poema "de resposta" no Abrupto . O Vasco não se limitou ao poema para o blog , mas faz a divulgação "em première mundial" de um poema seu trilingue . Aqui fica uma nota do Vasco , o poema para o blog e a " aretnap a pantera " .

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"Há meia dúzia de anos traduzi "A pantera", uma das peças mais célebres dos Neue Gedichte do Rilke, tendo-a incluído em apêndice à minha tradução dos Sonetos a Orfeu. Há poucas semanas, o Joaquim-Francisco Coelho escreveu-me de Harvard, onde é professor, a enviar-me a sua própria tradução da mesma pantera. Achei que o facto de ele ser brasileiro e eu português tinha alguma influência nas nossas versões. E dias depois fiz o ciclo que lhe envio para o seu blog, em première mundial (!!!), por me parecer que corresponde a algumas das solicitações que recebeu a meu respeito...
Trata-se afinal de um espelhar e contra-espelhar de ironias, em que às tantas o próprio Rilke escreve a Lou Andréas-Salomé, conversa com Rodin, engendra um soneto e "posa" para a pantera...
A qual, se estivesse na Internet, por certo se poria também a fazer um soneto. Qualquer coisa deste tipo:


não há nada no mundo que me pague
para aqui estar. não há nada que jogue
e nada que responda ou faça blague
por eu, panteramente, estar no blog.

não há verso do rilke que me afague,
por mais que o vgm aqui dialogue
com o jpp, quer me embriague,
quer passe fome, ou me espreguice e drogue.

sou a pantera fora da internet.
passo lá por acaso. depois saio
e volto às grades onde alguém me mete.

e rujo e rosno e mordo e não me ensaio
nada nas piruetas da disquette
de apagá-la depois. só me distraio.


Saudações ao seu público bloguista.
Vasco Graça Moura

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aretnap a pantera

(para Joaquim Francisco Coelho, por termos ambos traduzido
“Der Panther”, de Rainer Maria Rilke)


1.

fomos os dois à caça da pantera
que estava já da jaula sob o tecto;
na mesma língua e em cada idiolecto,
apanhá-la inteirinha, quem nos dera!

mas clonado, que fosse não se espera
dorso verbal em músculo inquieto,
e ao lê-lo, eu me felino e me arquitecto,
pois me pantero, e mais, se reverbera

noutro registo a língua subtil que,
de cada vez que a dupla se faz frente,
é jogo especular no abismo, acaso

devíamos levar a rainer rilke
esta parelha opaca e transparente
à trela, quando formos ao parnaso.

2.

as três irmãs, não digo as de tchekov,
as três panteras, sendo uma mais velha
que sempre as outras duas vê de esguelha
e a quem a semelhança não comove,

vêm rosnar-me à cabeça, sem que prove
seu coração, nem musa, voz, centelha,
céu, chão, mar, bicho, flor, fruto, bodelha,
nem quando faz calor, ou venta, ou chove.

são pura indiferença que imagino
saída da retina e da rotina
que em oxímoro as veja e traga e leve,

e afirme e negue o seu verbal destino
que mesmo no que afina, desafina:
panteras podem ser da cor da neve.

3.

as feras vivem junto de um reboco
sombrio de argamassa com o mundo
e o seu próprio rugir é vagabundo,
como se à noite fosse apenas troco

de o coração, notado num bloco,
a quente, a frio, fúnebre e jocundo,
dever vazar o sangue até ao fundo
dos muros do silêncio. e o tempo invoco

para que esse rugir, ao dar a volta,
e ao rasgar-se nas farpas de uma vala,
se faça um pó distante amortecido

e volte a concentrar-se e, posto à solta,
se transforme em angústia e a dispará-la
venha o seu cavo eco em meu ouvido.


4.

atrás das barras lia-se o felino,
e eram catorze, próprias do soneto,
entrecortando o ágil dorso preto,
elástico, estirado, repentino.

depois, quando ao papel cabeça inclino,
alargo da prisão o esqueleto
e quando desarmado nela a meto,
já quase sem cautelas me rotino.

porém, não esperava ver, após
este preliminar de uma abordagem,
que tanto pedigree ali se espere,

a reunir pantera e albatrós
e tigre e cotovia, em homenagem,
a rilke, borges, keats, baudelaire.

5.

quando a pantera, liebchen, és tu,
feita distância concentrada em mim,
e entre anestesia e frenesim
não sei que te dizer em paris, lou,

se nada de mim ponho agora a nu
e dentro apenas quero, de marfim
e arte nova, o ser que digo assim,
em arabesco, opalas e bambu.

talvez estejas farta, eslava minha,
por isso que a pantera te recorde
relâmpagos da alma nas estepes

e a própria solidão nadando asinha
nas veias da pantera que te morde
os tornozelos quando ao dorso trepes.

6.

volto a fechar a jaula e não me iludo:
três panteras assim não são demais,
geram-se umas às outras nos sinais,
podem multiplicar o seu veludo,

e como no xadrês, como no judo,
jogo e real são sempre desiguais.
a uma, à sorte, as frases cordiais:
o que é para ela o nada? o que é o tudo?

que deuses esmaltaram os seus dentes?
mandando o seu leitor se faire foutre
em mudos arremedos evidentes,

de que carne da alma então se nutre?
ou acaso desfaz, como um abutre,
um fígado já solto das correntes?

7.

num pesadelo, quando a vi, ao calhas,
pantera de palavras, traduzi-a
e com o óleo de uma almotolia
no pêlo, escorregou por entre as falhas;

comeu na ida todas as migalhas
que o sono em sobressaltos produzia
automáticamente na teoria
da tradução e em muitas outras tralhas.

puta pantera, não abandonavas
a língua de partida e o lampejo
com que na tua pele a recitavas,

mesmo que a de chegada, em teu bocejo,
não te poupasse ao oco das aljavas
e dele te fizesse um quase arpejo.

8.

ah, espreitar na selva entre lianas,
para entrever o brilho amarelado
de uns olhos que podia ter pintado
rousseau, douanier cheio de ganas!

ah, coração modelo para as manas
brontë, ou para um petrarca desolado
que expôs da humana fera um bom bocado
até camões cantar tigres hircanas!

e era o luto na vida, diz pessoa,
que não sabia nada de panteras,
nem de jaula que a luz furtiva acoite

se na fenda das pálpebras se coa,
trazendo à nossa era as outras eras,
assassinando e dando vida à noite.

9.

vai-se a pantera em sombra, extravagando.
secaram as palavras no seu fojo.
ficaram só as expressões de nojo
de alguém poder morrer, sem saber quando

o bicho voltará, agoniando
as vísceras e a alma. e havendo bojo,
esconderijos, luras, silvas, tojo,
que se usam para a ir camuflando,

não se sabe em verdade onde ela está:
pode voltar ou não. pode rugir,
fugir, morder o tempo atrás das barras.

pode vir pela noite. e oxalá
não fique feita em pedra a encardir.
e despedace a lira em suas garras.

10.

- chez vous, la forme s'ouvre, mon cher maître,
au vrai insaisissable. je voudrais
en faire autant, pourtant un coup de dès
ne perce ni les bêtes, ni leur être...

- la post-modernité avant la lettre,
vos mots pourront peut-être en dire assez,
laissez-les miroiter, pétrissez-les...
- mais je veux m'effacer et disparaître

pour n'exprimer que leur an sich dans
leur existence pure et leurs élans...
- si un chat est un chat, mon cher poète,

il sera chatoyant, mais grâce à vous...
- ich weiss, monsieur rodin, merci beaucoup.
la panthère! paris est une fête!

11.

Der Panther befand sich in der Leere tief
des gesteinerten Herzens. Da verbrannte
kein Blut mehr. Zwar nur die geahnte
traurige Enttäuschung des Daseins rief.

In seinen Augen langsam verschlief
des Tiers Erinnerung, vielleicht die sogenannte
Regenbogenwelt, vielleicht die gespannte
Muskelkraft, die dann um nichts griff.

Der Raum ist begrenzt und lautlos. Hast Du
den Panther, o Gott, mit der Leier
noch einmal gejagt und geschlagen?

Ach, singe nicht mehr, mach die Augen zu,
hör mal dieses Geräusch, der Lüge zur Feier:
damit wird der Überträger übertragen.

11.

no oco fundo onde a pantera estava
do coração de pedra, não ardia
o sangue já. triste se pressentia
o apelo do existir que se enganava.

devagar em seus olhos se ensonava
a lembrança animal, talvez um dia
o mundo do arco-íris; dir-se-ia
que a força muscular nada agarrava.

o espaço é limitado e mudo. tu,
acaso o bicho agora com a lira,
caçaste, ó deus, deixando-o aturdido?

não cantes mais e fecha os olhos no
ruído que celebra tal mentira:
assim o tradutor é traduzido.

12.

farta de ver um homem de olhos claros
e bigode mongol parado em frente
às grades, a pantera astutamente
concebeu um poema. nos preparos

foi notando de cor os termos raros,
dando sinais que fossem passar rente,
mas sem melancolia, ao vulto em gente,
especado e mordido com aparos

de poeta em cursivo. esse retrato,
sem subjectividade de animal,
no vulto atrás das grades intuiu.

e o ponto de visão dela era exacto:
equidistante às barras de metal
era um e outro. e ela desistiu.

13.

nunca ao pêlo das sílabas escape
alguma malha feita pelas sete
letras reordenadas: aretnap,
panrate, terapan ou naparet,

ou, se se preferir, mesmo etarnap:
em anagramas vários se reflecte
(já agora samargana) o chape-chape
em que o real no verbo se derrete.

mas não sendo a pantera um leopardo,
nem lince da malcata, quando não
odrapoel ou ecnil seria,

o arbítrio de seu nome é sem resguardo,
ãv palavra vã no espelho vão,
sonoridade a silabar bravia.

14.

para encontrar oculta a simetria
além do espelho, uivando pelas luas,
não penses que a pantera individuas
tendo em conta o que sabes. a ironia

tecnicamente ruge e acrobacia
não põe à vista quando faz das suas,
a devorar também as carnes cruas
dos nomes às avessas. sangraria

o engano em trompe l'oeil, curto-circuito,
relâmpago inefável? o que for
aqui perde o sentido. é só fortuito.

as outras qualidades lhe vai pôr,
regulando a medida a seu intuito,
e desmedindo-a, o próprio tratador.

15.

e voltámos da caça, remoendo
efeitos de prosódia e de sintaxe.
cada pantera é assim: primeiro dá-se
a ver, quando ninguém a está vendo.

talvez deitar-lhe à pele algum remendo
que a noite porventura facultasse,
quando a palavra a mais a esburacasse
mas buracos a menos fosse tendo...

que importa? ficará fotografia
da expedição: armados de canetas
e com um pé no dorso do animal.

há uma pantera tensa em cada dia,
um ser que é de florestas e provetas,
todo em literatura ocidental.



dois subprodutos


capriccio a

“pan-pan-te-te-te-te-ra”, gaguejava
um epí-pí-pí-pí-pí-go-gono triste,
“a con-con-di-di-ção es-cra-cra-cra-va,
al-gu-gu-gu-ma vez sen-tis-tis-tis-te?

ven-do o chi-chi-chi-co-co-tem ris-ris-te
que o tra-tra-tra-tra-dor des-des-tra-tra-va?
a tu-tu-tu-a fau-fau-ce bra-bra-va
quan-quan-quan-tas ve-ve-zes a-bris-bris-te?

é cer-to-to-to que eu ga-ga-gue-gue-jo,
to-to-da-vi-vi-via pre-ve-ve-jo
que-que vais mor-mor-der o en-go-go-go-do

e à noi-noi-noi-te fi-fi-fi-carás
so-sob o bi-bi-co de ga-ga-gás,
pois ten-ten-tens o tem-tem-po-po todo”.


capriccio b

o verso errado, marília, tem
uma sílaba a menos, alguma a mais,
ou, mesmo duas sendo, às doze ou treze chega,
e é sempre assim, quando ora escorrega
de nove para dez ou onze e também

se desmede das medidas em que porém
quando acerta fora do sítio e sem
saber técnicas heróicas que emprega,
ou sáficas, sem quarta, oitava sílaba, nega
o verso regular que lhe convém.

cruzes canhoto, que mais difícil é
fazer mal do que fazer bem e aqui
é tempo de desculpar a pantera,

que assim desmelodiosa, posta à ré,
não faz sentido nenhum e nem a vi,
nem revi, nem trevi, nem tetr... (bolas!) como era.

VASCO GRAçA MOURA

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© José Pacheco Pereira
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