ABRUPTO

1.7.07



ISTO VAI ACABAR MAL (4)

Carlos Rates, que foi o primeiro dirigente do PCP, fez, nos anos 20 do século passado, uma série de propostas "revolucionárias" para resolver os problemas portugueses, no caso de ele ser escolhido como "ditador proletário". Uma dessas propostas foi vender as colónias portuguesas para pagar a dívida externa, solução que ele pensava ser sensata e adequada ao governo de "comissários" que propunha. Rates era um homem interessante no sentido chinês de "interessante", velho sindicalista revolucionário, agitador e organizador sindical, poeta e fadista "social", romancista, o primeiro e único funcionário sindical pago na I República, articulista prolixo, amigo da URSS, homem de confiança da Internacional Comunista, porque não havia outro melhor, e que se intitulava "Lenine português". Acabou a aderir à União Nacional com uma curiosa declaração em que explicava que essa adesão era apenas a prossecução dos seus objectivos de sempre. Num certo sentido, não estava a mentir. O PCP praticamente varreu-o da sua história.

Quando se olha para a composição do governo "proletário" que ele pretendia criar, verifica-se que os seus "comissários" eram homens da área da Seara Nova, que mais tarde se ligou ao Estado Novo, fornecendo-lhe gente moderna e arejada, especialistas em matérias como a agricultura, a indústria, ou outras formas de resolver o "problema nacional". Esses homens eram aquilo que hoje chamaríamos "tecnocratas", politicamente empenhados um pouco ao modo dos gestores do Compromisso Portugal. É por isso que quando Rates fez a sua proposta de venda das colónias não era porque fosse um grande revolucionário, mas sim porque achava que a venda das colónias era uma forma sensata e eficaz de resolver o "problema nacional", porque, como muitos sindicalistas do seu tempo, tinha uma veneração pelo saber e pela técnica, por um governo de tecnocratas que deixariam a política à porta e iriam como especialistas pôr no papel as melhores soluções dos livros, sem se preocuparem com essa sujidade do voto, do povo, dos parlamentos, das eleições.

Carlos Rates, se fosse vivo hoje, seria certamente um europeísta extremado e estaria a clamar contra essa imperfeição que é levar a votos os primores do pensamento iluminista desse "grande projecto europeu", progressista e desenvolvimentista, defendido hoje por uma mistura de incarnações de mini-Kants em potência, sem desprimor para o maxi-Kant, e de tecnocratas e burocratas que acham que eles sabem melhor que nós o que é bom para nós. Como antigo comunista agradar-lhe-ia também o aspecto de engenharia social e política do "projecto", essa moldagem do cidadão europeu à custa do vigor das grandes abstracções. Rates perceberia bem o Governo Sócrates e todos os que mandam retirar o referendo da agenda pública e que preparam o argumentário para não o fazer, a começar pelo Presidente da República. A força deste mando governamental é enorme na actual conjuntura e não admira os ecos que obtém. O PS, esse não conta para nada, muito menos até do que o PSD, mesmo quando estava Cavaco no governo. É difícil estar mais morto do que o PS está.

O PP também anda às voltas com o compromisso do referendo colocando-se ao lado do Governo. Não admira, o partido unipessoal permanece coerente com a sua política: tudo o que incomoda Paulo Portas deve ser evitado e poucas coisas incomodam mais o dirigente do PP que a sua história de soberanista e antieuropeísta radical convertido à Constituição europeia.
Não é ao "tratado simplificado", é à Constituição europeia, que aprovou para se manter no Governo. Por isso, um referendo que clarificasse as posições de cada uma das partes, com um "não" ou um "sim" como opções, seria uma clarificação muito aborrecida para o homem da palmeta e da pêra-rocha.

O PSD mantém o seu compromisso referendário e bem, mas dificilmente conseguirá impor-se, porque no essencial concorda com o Governo quanto à substância do novo tratado europeu. Isso retira-lhe a força que é necessária para perceber que o referendo não é apenas uma questão de método, mas uma questão de fundo que implica uma avaliação negativa do curso da União Europeia nos últimos anos. Isso não retira mérito a Marques Mendes, que ainda por cima tem que aturar o tacticismo dos seus opositores que, quando ele diz branco, passam logo para o lado do negro. Se ele dissesse negro, estariam do lado do branco. A essa simples transumância entre ser virgem ou diabo soma-se a posição de muitos ex-ministros dos governos Barroso-Lopes que continuam a ter uma enorme nostalgia sobre a governação perdida e que acham que, concordando com o Governo Sócrates, mostram "sentido de Estado".

O mesmo se pode dizer das mil e umas personagens que descobriram a vocação recente de "amigos do Governo" e que estão activamente a encostar-se ao poder, percebendo que o primeiro-ministro é autoritário e vingativo e que marginaliza todos o que não estão com ele. Como a proximidade ao poder é uma necessidade vital para muitas carreiras, a ideia de terem que estar no deserto, tantos anos quantos imaginam que Sócrates governe, é-lhes insuportável. Isso passa-lhes quando o PSD estiver outra vez no limiar do poder, altura em que passarão furiosamente para a oposição outra vez.

Quanto ao Presidente, é o menos imprevisível dos actores nesta matéria. Cavaco Silva começou a sua carreira política como um eurocéptico, próximo de Thatcher, mas a sua experiência de governante de Portugal levou-o a perceber como era difícil mudar um país que tinha uma enorme inércia e resistência à mudança. Cavaco Silva converte-se à Europa por cepticismo com Portugal e os portugueses, convencendo-se que, não havendo forças endógenas para a mudança, mais valia confiar nas forças exógenas. Com uma União Europeia a caminho do euro, tendo como corolários colocar na ordem as finanças e acabar com a facilidade das desvalorizações competitivas, Cavaco tornou-se o "melhor aluno" da Europa. Consistentemente votou e apoiou todo o caminho para um upgrade político da Europa, e pouca gente como ele assume melhor esse iluminismo do "projecto europeu".
http://www.europarl.europa.eu/eplive/expert/photo/20060111PHT04200/pict_20060111PHT04200.jpg Entre outras coisas feitas para a Europa ser "europeia" à força contavam-se projectos de uma "equipa de futebol europeia", uma "equipa de ciclismo europeia", etc., etc, de que se falava no Parlamento Europeu. Mas este logotipo também é interessante, porque é o da "Constituição Europeia", que foi reprovada, mas que continua a existir nas publicações do Parlamento Europeu.

Com tanto consenso contra o referendo, que reflecte aliás o mesmo consenso ante esta fraude de fazer passar sob disfarce as soluções chumbadas da Constituição europeia, restam meia dúzia de ET, na qual me incluo, que afirmam e reafirmam que, se se continuar a seguir este caminho, isto vai acabar mal. Chamo a meu favor alguma presciência, que é pouco mais do que bom senso, se ela ajudar a que me ouçam melhor: eu sempre disse, desde os gloriosos tempos da Convenção, que a Constituição europeia nunca passaria no voto dos europeus, como aliás aconteceu.

Verdade seja que nem mesmo com o meu cepticismo militante imaginei esta operação de engano e fraude deliberada que se passou no último Conselho Europeu. Terei que rever a minha capacidade de imaginar o despudor alheio, mas continuo firme a dizer o que de há algum tempo sempre tenho dito: hoje, dia trinta de Junho de dois mil e sete, eu, o abaixo-assinado, faço a mais fácil das previsões - isto vai acabar mal, porque está a ser mal feito, está a a ser feito com má fé, está a ser feito com dolo, está a ser feito para nos convencer que o gato é a lebre. Eu ainda sou da escola que acha que o gato não é uma lebre e não conto aderir à União Nacional.

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© José Pacheco Pereira
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