ABRUPTO

25.12.04


OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: A NOSSA CASA



Se nós fôssemos pessoas de medos, o medo estaria em toda esta imagem. Há ali uma dimensão que não é a nossa. Há ali um frio que não é o nosso. Há ali uma força que não é a nossa. Há ali uma perfeição que não é a nossa. Toda a estranheza do mundo está ali. Olhando bem, tudo nos é alheio, tudo é inumano e o inumano é o que mais tememos. Medo primeiro, medo ancestral, medo geneticamente inscrito, medo do que não sabemos, do que não controlamos. Nós confiantes que controlamos, ou seja, possuímos, a nossa pequena terra, que não há mar, nem gelo, nem tempestade, nem rio, nem montanha que não possamos visitar, conquistar, domar com a vontade e a coragem, chegamos aqui e c’est toute une autre affaire!

Claro que há a beleza, que parece a mais humana de todas as sensações. Kant já tinha percebido que não era bem assim, que há beleza que não é humana, que há beleza que infunde o terror. Será que queremos mesmo vê-la? Será que confrontados com este mundo, que é o mundo, que é o que está lá fora, na esquina do nosso pequeno sistema solar, verdadeiramente queremos mais do que saber? Eu sei que sim. Queremos saber, mas vamos querer habitar. Talvez a nossa casa se faça sempre contra o medo. Talvez.

(Da sonda Cassini muito longe, esta foto para o Natal dos terrestres.)

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24.12.04


BOAS FESTAS COM COISAS SIMPLES E CERTAS


Paula Modershon-Becker

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APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: ESTRELAS

"Começando pelo amar e veneração dos gentios, aquela estrela que trouxe os Magos a Cristo era uma figura celestial e muito ilustre dos pregadores da fé. Assim o diz S. Gregório, e os outros padres camumente mas a mesma estrela o disse ainda melhor. Que ofício foi o daquela estrela? Alumiar, guiar e trazer homens a adorar a Cristo, e não outros homens, senão homens infiéis e idólatras, nascidos e criados nas trevas da gentilidade. Pois, esse mesmo é a ofício e exercício, não de quaisquer pregadores, senão daqueles pregadores de que falamos, e por isso propriamente estrelas de Cristo. Repara muito S. Máximo, em que esta estrela, que guiou os magos, se chame particularmente estrela de Cristo: Stella ejus e argúi assim: Todas as outras estrelas não são, também, estrelas de Cristo, que como Deus as criou? Sim, são. Pois, por que razão esta estrela, mais que as outras, se chama especialmente estrela sua: Stella ejus? Porque as outras estrelas foram geralmente criadas para tochas do céu e do mundo: esta foi criada especialmente para pregadora de Cristo: Quia quamvis omnes ab eo creatae stellae ipsius sint, haec tamen propna Christi erat, quia specialiter Christi nuntiabat adventum. – Muitas outras estrelas há naquele hemisfério muito claras nos resplendores e muita úteis nas influências, coma as do firmamento, mas estas de que falamos são própria e especialmente de Cristo, não só pelo nome de Jesus, com que se professam por suas, mas porque afim, a instituto e o ofício para que foram criadas, é o mesmo que o da estrela dos Magos, para trazer infiéis e gentios à fé de Cristo. Ora, se estas estrelas fossem tão diligentes, tão solícitas e tão pontuais em acompanhar, e guiar, e servir aos gentios, como a que acompanhou, guiou e serviu aos Magos, não teriam os mesmos gentios muita razão de as quererem e estimarem, de sentirem muita sua falta, e de se alegrarem e consolarem muita com sua presença? Assim o fizeram os Magos, e assim o diz o evangelista, não acabando de encarecer este contentamento: Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde. Pois, vamos agora seguindo os passas daquela estrela, desde o oriente até ao presépio, e veremos como as que hoje vemos tão mal vistas e tão perseguidas, não só imitam e igualam em tudo a estrela dos Magos, mas em tudo a excedem com grandes vantagens."

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COISAS SIMPLES


Harriet Backer

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EARLY MORNING BLOGS 392

Ladainha dos póstumos natais


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito.


(David Mourão-Ferreira)

*

Bom dia!

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23.12.04


ESTÁ NA ALTURA



de partir de novo.

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APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: A VITÓRIA DE CATARINA

"Se na consideração do número venceu Santa Catarina as Virgens sábias do Evangelho, reduzindo ela só a cinquenta, quando elas, sendo cinco, não puderam nem souberam reduzir a uma, não foi menos ilustre a sua vitória na consideração do sexo. As virgens, sendo mulheres, não ensinaram a uma mulher; Catarina, sendo mulher, ensinou a cinquenta homens. O apóstolo São Paulo fiou tão pouco do género feminino, que a todas as mulheres proibiu o ensinar: Docere autem mulieri non permitto. E que razão teve São Paulo para um preceito tão universal e tão odioso a metade do género humano, e na parte mais sensitiva dele? A razão que teve foi a maior de todas as razões, que é a experiência: Adam non est seductus, mulier autem seducta in praevaricatione fuit (1 Tim. 2,14): Em Adão e Eva — diz o Apóstolo — se viu a diferença que há entre o entendimento do homem e o da mulher — porque Eva foi enganada, Adão não. — Ensine logo Adão, ensine o homem; Eva e a mulher, não ensine. O que só lhe convém, e o que lhe mando, é que aprenda e cale: Mulier in silentio discatt. Segundo este preceito, que mais parece natural que positivo, pois o Apóstolo o deduz desde Adão e Eva, Catarina havia de aprender e calar, como mulher, e os filósofos ensinar, como homens, como filósofos, como graduados nas suas ciências, e como os primeiros e mais insignes mestres delas. Mas que Catarina fale e os filósofos ouçam, que Catarina ensine e os filósofos aprendam, que Catarina não só dispute, mas defina, não só argumente, mas conclua, não só impugne, mas vença, e tantos homens, e tais se reconheçam e confessem vencidos, foi vitória que de sexo a sexo só teve um exemplo, e de entendimento a entendimento nenhum."

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OS NOVOS DESCOBRIMENTOS: VOLTANDO A CASA



(A protecção térmica da Opportunity, que a sonda voltou a encontrar ao inverter o caminho que a levou à cratera.)

- Aqui estou, voltando a casa, pisando o mesmo caminho, vendo as mesmas coisas com os meus velhos olhos.

- As mesmas?

- Não sei. As mesmas. A mudança é uma ilusão.

- Isso é um ilusão ainda maior. Tudo muda.

- Engano. Eu sou uma adepta tardia de Parménides, num mundo em que abundam os partidários daquele que fala do rio que corre. Em Marte a água já se foi.

- Tens a certeza?

- Tenho. Nunca nada muda no tempo, as pessoas confundem mudança com destino. Não há destino, só encontros. Não há tempo, só há momentos. Não há vento, só pedras que rolam.

- Para onde?

- Para o seu sítio. Para o Lugar Universal, para a gravidade. Não sei. O meu é aqui.

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COISAS SIMPLES: ARRUMAR


Leroy de Barde, Reúnions d'oiseaux étrangers placés dans les différentes caisses

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22.12.04


EARLY MORNING BLOGS 391

Saison fidèle aux coeurs qu'importune la joie


Saison fidèle aux coeurs qu'importune la joie,
Te voilà, chère Automne, encore de retour.
La feuille quitte l'arbre, éclatante, et tournoie
Dans les forêts à jour.

Les aboiements des chiens de chasse au loin déchirent
L'air inerte où l'on sent l'odeur des champs mouillés.
Gonflés d'humidité, les prés mornes soupirent
En cédant sous les pieds.

Les oiseaux voyageurs, par bandes, dans les nues,
Emigrent vers le Sud et les soleils plus chauds.
Les laboureurs, penchés sur les lentes charrues,
Couronnent les coteaux.

Le soir, à l'horizon, parfois le ciel est rose ;
Des troupes de corbeaux traversent le couchant.
Dans le creux des sillons de la plaine repose,
Pensive, une eau d'argent.


(Charles Guérin)

*

Bom dia, belo dia!

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COISAS SIMPLES


Edouard Boubat

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ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: O COSTUME

Why It Often Rains in the Movies


Because so much consequential thinking
happens in the rain. A steady mist
to recall departures, a bitter downpour
for betrayal. As if the first thing
a man wants to do when he learns his wife
is sleeping with his best friend, and has been
for years, the very first thing
is not to make a drink, and drink it,
and make another, but to walk outside
into bad weather. It's true
that the way we look doesn't always
reveal our feelings. Which is a problem
for the movies. And why somebody has to smash
a mirror, for example, to show he's angry
and full of self-hate, whereas actual people
rarely do this. And rarely sit on benches
in the pouring rain to weep. Is he wondering
why he didn't see it long ago? Is he wondering
if in fact he did, and lied to himself?
And perhaps she also saw the many ways
he'd allowed himself to be deceived. In this city
it will rain all night. So the three of them
return to their houses, and the wife
and her lover go upstairs to bed
while the husband takes a small black pistol
from a drawer, turns it over in his hands,
then puts it back. Thus demonstrating
his inability to respond to passion
with passion. But we don't want him
to shoot his wife, or his friend, or himself.
And we've begun to suspect
that none of this is going to work out,
that we'll leave the theater feeling
vaguely cheated, just as the movie,
turning away from the husband's sorrow,
leaves him to be a man who must continue,
day after day, to walk outside into the rain,
outside and back again, since now there can be
nowhere in this world for him to rest.


(Lawrence Raab)

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21.12.04


O "MEME" DE HOJE

é a palavra "patética" para designar a conferência do almoço. Já fez o seu caminho.

Outro "meme" que caminhou bastante foi a fotografia de António Pedro Ferreira, publicada no Expresso.

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BIBLIOFILIA


W.G.Sebald, After Nature, New York, Modern Library, 2002

...et iam summa procul villarum
culmina fumant maioresque cadunt de montibus umbrae.


Virgílio

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CONFERÊNCIA DE IMPRENSA PATÉTICA

desesperada. A justificação do que se passa com recortes de jornais estrangeiros, com as faltas dos outros. E depois aquele sorriso que emerge no Primeiro-ministro sempre que fala dos "outros", dos "alguns", como se viesse lá do fundo um prazer da vitimização e de culpa alheia. Onde Bagão Felix se zanga, Santana Lopes sorri quando ataca os adversários reais e imaginados.

(O inadmissível corte da transmissão directa da conferência de imprensa pela RTP, antes de se saber qual era a solução do problema do défice… Serviço público.)

Nota suplementar: a RTP não podia saber que afinal nada de concreto ia ser anunciado quando interrompeu a emissão, portanto fez mal. Se o soubesse isso poderia justificar não só o corte, como até a não-transmissão. Não tendo objecto que não fosse o governo exercer o "contraditório" face aos seus críticos, ou seja Santana Lopes e Bagão Felix balbuciarem umas desculpas - e eu garanto-vos que não gosto de usar a palavra pejorativa "balbuciar" se não fosse mesmo assim - e dizerem que o governo português faz os mesmos truques orçamentais dos outros, a conferência torna-se ainda mais penosa. Está de facto a bater-se num fundo muito fundo.

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O NOSSO CAOS



continua todos os dias. Sair disto vai ser complicado.

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ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: AS PORTAS DA TRAIÇÃO

Em muitos castelos há portas da traição. Todas têm uma lenda, uma história de traição. Ficamos a saber assim que as portas são dadas a estas actividades e ficam por isso malditas. Quem as atravessa sente, sente que é só uma questão de tempo até que desça o traidor com as chaves da confiança e suba o furtivo para, conquistando, acabar por desprezar o traidor. Foi sempre assim, será sempre assim. A traição é a actividade que mais corrói.

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OUVINDO (2)

O mesmo. A magnífica Frehel, a bela Pervenche, retratada por Colette, seduzida por Roberty (estes nomes...), prematuramente envelhecida, ganhando a sua "gueule de mère maquerelle" , que morreu, miserável e esquecida, cheia de bebida e drogas num hotel de Pigalle, a cantar antes da "excepção cultural":

Y'en a qui vous parlent de l'Amérique
Ils ont des visions de cinéma
Ils vous disent " quel pays magnifique "
Notre Paris n'est rien auprès d'ça
Ces boniments-là rendent moins timide,
Bref, l'on y part, un jour de cafard...
Ça fera un de plus qui, le ventre vide
Le soir à New-York cherchera un dollar
Au milieu des gueus's, des proscrits,
Des émigrants aux cœurs meurtris;
Il pensera, regrettant Paris

Où est-il mon moulin de la Place Blanche ?
Mon tabac et mon bistrot du coin ?
Tous les jours étaient pour moi Dimanche !
Où sont-ils les amis les copains ?
Où sont-ils tous mes vieux bals musette ?
Leurs javas au son de l'accordéon
Où sont-ils tous mes repas sans galette ?
Avec un cornet de frites à dix ronds
Où sont-ils donc ?

D'autres croyant gagner davantage
Font des rêves d'or encore plus beaux
Pourquoi risquer un si long voyage
Puisque Paris est plein de gogos?
On monte une affaire colossale,
Avec l'argent du bon populo,
Mais un jour, crac...
c'est le gros scandale :
Monsieur courra ce soir au dépôt !
Et demain on le conduira
Pour dix années à Nouméa.
Encore un de plus qui dira :

Où est-il mon moulin de la Place Blanche ?
Mon tabac et mon bistrot du coin ?
Tous les jours étaient pour moi Dimanche !
Où sont-ils les amis les copains ?
Où sont-ils tous mes vieux bals musette ?
Leurs javas au son de l'accordéon
Où sont-ils tous mes repas sans galette ?
Avec un cornet de frites à dix ronds
Où sont-ils donc ?

Mais Montmartre semble disparaître
Car hélas de saison en saison
Des Abbesses à la Place du Tertre,
On démolit nos vieilles maisons.
Sur les terrains vagues de la butte
De grandes banques naîtront bientôt,
Où ferez-vous alors vos culbutes,
Vous, les pauvres gosses à Poulbot ?
En regrettant le temps jadis
Nous chanterons, songeant à Salis,
Montmartre ton " De Profundis ! "

Où est-il mon moulin de la Place Blanche ?
Mon tabac et mon bistrot du coin ?
Tous les jours étaient pour moi Dimanche !
Où sont-ils les amis les copains ?
Où sont-ils tous mes vieux bals musette ?
Leurs javas au son de l'accordéon
Où sont-ils tous mes repas sans galette ?
Avec un cornet de frites à dix ronds
Où sont-ils donc ?

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OUVINDO




A França deveria ser completamente insuportável nos anos trinta, mas fazia bom cinema e boas canções. Vento fresco? Aqui está: a Arletty a cantar "J'enleve ma liguette", Chevalier o "Chapeau de Zozo", Ray Ventura "Tout va trés bien madame la marquise" (que devia ser o hino do sindicato das empregadas domésticas) e Jean Murat "Les gars de la Marine" do filme Le Capitaine Craddock (1931). Tudo mais extinto que os dinossauros.

Les gars de la Marine

Quand on est matelot
On est toujours sur l'eau.
On visite le monde,
C'est l'métier le plus beau !
Du Pôl' Sud au Pôl' Nord,
Dans chaque petit port,
Plus d'une fille blonde
Nous garde ses trésors.
Pas besoin de pognon.
Mais comm' compensation,
À toutes nous donnons
Un p'tit morceau d'nos pompons !

{Refrain:}
Voilà les gars de la marine,
Quand on est dans les cols bleus
On n'a jamais froid aux yeux.
Partout du Chili jusqu'en Chine,
On les r'çoit à bras ouverts,
Les vieux loups d' mer.
Quand une fille les chagrine
Ils se consol'nt avec la mer !
Voilà les gars de la marine,
Du plus p'tit jusqu'au plus grand,
Du moussaillon au commandant.

Les amours d'un col bleu,
Ça n'dur' qu'un jour ou deux.
À pein' le temps d'se plaire
Et de se dire adieu !
On a un peu d'chagrin !
Ça passe comme un grain !
Les plaisirs de la terre...
C'est pas pour les marins !
Nous n'avons pas le droit
De vivre sous un toit,
Pourquoi une moitié ?
Quand on a le monde entier !

{au Refrain}

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POEIRA DE 21 DE DEZEMBRO

Hoje, há cento e cinquenta e quatro anos, Tolstoy escreveu no seu diário: “não devo ler romances”. Fez-lhe bem, conseguiu escrever alguns. Oitenta e nove anos mais tarde, também hoje, Cesare Pavese escrevia: “o amor é a forma mais barata de religião”. Deve haver por isso um espírito do dia. Tolstoy amava a “humanidade” o que significava que não amava ninguém, e talvez por isso foi capaz de escrever verdadeiras histórias de amor como esta.


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COISAS SIMPLES


P. Bonnard

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EARLY MORNING BLOGS 390

La destruction

Sans cesse à mes côtés s'agite le Démon ;
Il nage autour de moi comme un air impalpable ;
Je l'avale et le sens qui brûle mon poumon
Et l'emplit d'un désir éternel et coupable.

Parfois il prend, sachant mon grand amour de l'Art,
La forme de la plus séduisante des femmes,
Et, sous de spécieux prétextes de cafard,
Accoutume ma lèvre à des philtres infâmes.

Il me conduit ainsi, loin du regard de Dieu,
Haletant et brisé de fatigue, au milieu
Des plaines de l'Ennui, profondes et désertes,

Et jette dans mes yeux pleins de confusion
Des vêtements souillés, des blessures ouvertes,
Et l'appareil sanglant de la Destruction !

(Baudelaire)

*

Bom dia!

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ANTOLOGIA DA TRAIÇÃO: JUDAS

21 Tendo Jesus dito isto, turbou-se em espírito, e afirmou, dizendo: Na verdade, na verdade vos digo que um de vós me há de trair.
22 Então os discípulos olhavam uns para os outros, duvidando de quem ele falava.
23 Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus.
24 Então Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de quem ele falava.
25 E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é?
26 Jesus respondeu: É aquele a quem eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão.
27 E, após o bocado, entrou nele Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-lo depressa.
28 E nenhum dos que estavam assentados à mesa compreendeu a que propósito lhe dissera isto.
29 Porque, como Judas tinha a bolsa, pensavam alguns que Jesus lhe tinha dito: Compra o que nos é necessário para a festa; ou que desse alguma coisa aos pobres.
30 E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E era já noite.




Este fragmento do Evangelho de S. João é um dos grandes textos sobre a traição. A sequência dramática está toda feita sobre a mentira, o mal-entendido, o engano. Jesus anuncia a traição aos apóstolos, mas não diz quem o traiu. Estes ficam curiosos, mas não perguntam. Para eles a ideia de traição era tão insuportável que temiam falar dela.

Fosse qual fosse o traidor, era um deles, um amigo, um companheiro. A traição, rompendo a identidade de um dos que comiam à mesma mesa, conspurcava tudo à volta. Quando ganham coragem para perguntar, fazem-no tão a medo e de forma tão ambígua, que não percebem o sentido da resposta. Levantaram-se da mesa convencidos que não era bem aquilo que tinham ouvido.

Jesus deu o pão a Judas, mas o pão vinha molhado, como se o demónio estivesse nessa humidade. “Após o bocado, entrou nele Satanás”, porque este bocado de pão era o contrário do pão sacramental que Jesus ensinara os discípulos a tomar. No Pão estava Deus, no pão molhado estava Satanás. O pão também era capaz de trair.

Então Jesus diz palavras ainda mais enigmáticas: “o que fazes, faze-lo depressa”. Porque é que Jesus disse isto a Judas? Porque para Jesus também era insuportável o espectáculo da traição. Se trais, trai já, exerce já o ofício da traição, porque, mesmo para Jesus, a presença do traidor e a visão do acto da traição perturbam.

Quando Judas saiu, com Satanás dentro dele, era noite. Fez-se noite.

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20.12.04


BIBLIOFILIA PARA COLECCIONADORES







O último número da Granta tem um ensaio sobre "The Collector", neste caso Joseph Mitchell. Mitchell, depois de escrever Joe Goulds's Secret, pouco mais escreveu e menos publicou. Dedicava-se a andar pelos prédios abandonados ou em demolição do sul de Manhattan a recolher pregos, bocados de estuque, placas de ferro forjado, velhas tabuletas, números de portas. Recolhia-os e depois classificava-os como um taxidermista. Há fotografias das peças e dos rótulos. Uma forma de loucura mansa, que os coleccionadores conhecem.

*

"Acho que está a confundir taxidermia (arte de preparar cadáveres para os conservar...) com taxinomia (arte de classificar)."

A.M.R.

*

Obrigado pela precisão. Neste caso era intencional. Podia ser "abria-os como um taxidermista e classificava-os como um taxinomista", mas não sei como se abre um prego.

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UM MUNDO MUITO PRÓPRIO

O índice do livro Barnabé, que antologia os textos do blogue, é um retrato muito curioso do mundo dos seus autores. Um dos mais loquazes protagonistas da política portuguesa, Francisco Louça, não tem uma entrada sequer. Nem Fernando Rosas, Luís Fazenda, Ana Drago, merecem uma palavra. A excepção são duas escassas entradas para Miguel Portas. Assim é fácil.

Mas há mais: as duas pessoas mais citadas são George Bush e eu. Estranho mundo o deles. Onde será?

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VENTO FRIO

vem. Rápido.

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APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: TEMOR

"Toda a santidade e toda a virtude deste mundo, bem considerada, é temor. A maior e mais qualificada façanha que neste mundo se fez por Deus foi a de Abraão. Leva Abraão seu filho Isac ao monte, ata-o sobre a lenha do sacrifício, tira pela espada para lhe cortar a cabeça; manda-lhe Deus suspender o golpe, e diz estas palavras: Nunc cognovi quod times Deum (Gên. 22, 12): Agora conheço, Abraão, que temes a Deus. — Que temes a Deus? Pois, como assim? Quando Abraão por amor de Deus sacrifica seu próprio filho, quando Abraão por amor de Deus corta as esperanças de sua casa, quando Abraão por amor de Deus mata a seu mesmo amor, parece que então havia de dizer Deus: Agora, Abraão, conheci que me amas. Mas: agora conheci que me temes? Sim, porque, bem considerada aquela façanha de Abraão, e vista por dentro, como Deus a via, teve mais de temor que de amor. Bem via Abraão que matar a Isac era matar-se a si mesmo, mas via também que se o não matava, desobedecia, que se desobedecia, ofendia a Deus, que se ofendia a Deus, condenava-se, e este temor de se não condenar o pai, foi o que pôs a espada na garganta ao filho. Quando o pai e o filho iam caminhando para o sacrifício, diz o texto que levava Abraão em uma mão a espada, e na outra o fogo: Ipse vero portabat in manibus ignem et gladium (Gên. 22,6). Oh! que bons dois espelhos para aquela ocasião! Na mão da espada ia a morte do filho; na mão do fogo ia o inferno do pai. Se obedeces, hás de matar; se desobedeces, hás de arder. O amor via-se ao espelho da espada, o temor via-se ao espelho do fogo. — É possível, pai, que hás de matar o teu filho único e amado? E que a vida e o sangue que lhe deste a hás de derramar com tuas próprias mãos? Não há de ser assim: viva Isac, e caia rendido o braço da espada. Mas, se não morrer Isac — replicava o temor — se Isac sacrificado se não abrasa neste fogo, há de ir Abraão, por desobediente, arder no do inferno. Ou arder Abraão, ou morrer Isac. Oh! que cruel dilema para um pai! Mas, passar a espada pela garganta de Isac, é um momento — instava o temor — e arder Abraão no inferno, é uma eternidade: pois, padeça um instante o filho, para que não pene eternamente o pai. Torne-se a levantar o braço da espada; e já ia descarregando resolutamente o golpe, mas acudiu Deus. E como toda esta resolução de tirar Abraão a vida a seu filho foi por temor de não ofender a Deus e se condenar, por isso Deus não disse: — Agora conheci, Abraão, que me amas, senão, agora conheci que me temes: Nunc cognovi quod times Deum."

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COISAS SIMPLES


Jan Bruegel

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EARLY MORNING BLOGS 389

SOME TREES


These are amazing: each
Joining a neighbor, as though speech
Were a still performance.
Arranging by chance

To meet as far this morning
From the world as agreeing
With it, you and I
Are suddenly what the trees try

To tell us we are:
That their merely being there
Means something; that soon
We may touch, love, explain.

And glad not to have invented
Some comeliness, we are surrounded:
A silence already filled with noises,
A canvas on which emerges

A chorus of smiles, a winter morning.
Place in a puzzling light, and moving,
Our days put on such reticence
These accents seem their own defense.


(John Ashbery)

*

Bom dia!

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BIBLIOFILIA

Frederico Lourenço, Amar Não Acaba, Livros Cotovia, 2004

Leiam, leiam, leiam este livro estranho, memória autobiográfica da adolescência, escrita a vinte anos de distância – muito pouco. Um retrato de uma família portuguesa pouco portuguesa, que deixou construir à sua volta uma teia cultural vivida nas suas formas mais “pesadas”: a ópera, a música, as línguas, o comunitarismo panteísta de Lanza del Vasto. Este texto é uma surpresa: não sabia que alguém vivia assim entre nós.
O relato de Frederico Lourenço é umas vezes franco, outras vezes bizarro, pela densidade cultural que parece sempre excessiva. Pode-se viver assim? Pode-se viver sempre dentro do texto dos outros? Pode-se viver sempre dentro dos gestos do bailado, das palavras dos lied, do universo total e absoluto de Wagner? Pode-se viver, amar, face a presenças tão intensas e tão inequívocas como as da grande arte? Pode-se viver no meio da beleza transmitida pelas obras de arte sem que estas preencham todo o espaço do sentimento? O que é que sobra? Pode-se ser feliz num universo tão povoado de sentido? Duvido, mas também este livro não é sobre a felicidade, mas sim sobre o deslumbramento.

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19.12.04


APRENDENDO COM O PADRE ANTÓNIO VIEIRA: MUNDUM IN PARVO, MAGNUM

"Os filósofos antigos chamaram ao homem mundo pequeno; porém, S. Gregório Nazianzeno, melhor filósofo que todos eles, e por excelência o Teólogo, disse que o mundo comparado com o homem é o pequeno, e o homem, em comparação do mundo, o mundo grande: Mundum in parvo, magnum. — Não é o homem um mundo pequeno que está dentro do mundo grande, mas é um mundo, e são muitos mundos grandes, que estão dentro do pequeno. Baste por prova o coração humano, que, sendo uma pequena parte do homem, excede na capacidade a toda a grandeza e redondeza do mundo. Pois, se nenhum homem pode ser capaz de governar toda esta maquina do mundo, que dificuldade será haver de governar tantos homens, cada um maior que o mesmo mundo, e mais dificultoso de temperar que todo ele? A demonstração é manifesta. Porque nesta máquina do mundo, entrando também nela o céu, as estrelas tem seu curso ordenado, que não pervertem jamais; o sol tem seus limites e trópicos, fora dos quais não passa; o mar, com ser um monstro indômito, em chegando às areias pára; as árvores, onde as põem, não se mudam; os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com a terra. Pelo contrário, o homem, monstro ou quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição nem apetite o farta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e, como é maior que o mundo, não cabe nele. "

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MOMENTOS

Um dirigente político que se quer afirmar sabe que nem sempre lhe passam à frente oportunidades de mostrar a diferença. A Sócrates surgiu uma e ele deitou-a fora: deveria demarcar-se de forma inteiramente clara das manigâncias, aliás já contumazes, do PS Porto, uma das organizações mais aparelhísticas de qualquer partido português, de usar Pinto da Costa como trunfo eleitoral contra Rui Rio. Pinto da Costa não está em posição diferente da do antigo deputado do PSD, Cruz Silva, e ,por ser uma personagem de maior relevo social, ainda mais rigor teria que haver. Sócrates calou-se para não perder os votos dos Super Dragões, ou pior ainda. Revelou-se.

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A LER

De novo, as INDÚSTRIAS CULTURAIS, um bom exemplo de jornalismo especializado que complementa em tempo útil (uma forma "útil" do tempo real) o que (não) vem nos jornais.

Alguns textos de Luis Rainha no Blogue de Esquerda.

Louvor à imensa utilidade dos Frescos, mesmo quando não funcionam bem e estão pouco frescos.

A página do Clube dos Jornalistas. Pesem todas as objecções, o Clube dos Jornalistas tem realizado um trabalho de auto-reflexão sobre o jornalismo que nunca tinha sido feito com esta amplitude e variedade.

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COISAS


Andy Warhol

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EARLY MORNING BLOGS 388

Ici de mille fards la traïson se déguise


Ici de mille fards la traïson se déguise,
Ici mille forfaits pullulent à foison,
Ici ne se punit l'homicide ou poison,
Et la richesse ici par usure est acquise

Ici les grands maisons viennent de bâtardise,
Ici ne se croit rien sans humaine raison,
Ici la volupté est toujours de saison,
Et d'autant plus y plaît que moins elle est permise.

Pense le demeurant. Si est-ce toutefois
Qu'on garde encore ici quelque forme de lois,
Et n'en est point du tout la justice bannie.

Ici le grand seigneur n'achète l'action,
Et pour priver autrui de sa possession
N'arme son mauvais droit de force et tyrannie.


(Joachim du Bellay)

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Bom dia!

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© José Pacheco Pereira
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